Política
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26 de novembro de 2022
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09:46

Desmonte nos serviços, orçamento minguado e conservadorismo: a herança de Damares Alves

Por
Duda Romagna
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Além de personalidade política, Damares também é pastora. Foto: Wilson Dias/Agência Brasil
Além de personalidade política, Damares também é pastora. Foto: Wilson Dias/Agência Brasil

A partir da reforma ministerial de 2015, no governo de Dilma Rousseff (PT), o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos (MMIRDH) foi consolidado pela junção das secretarias de Políticas para as Mulheres, de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e de Direitos Humanos. Antes, porém, as secretarias também tinham estatuto de ministério. 

Em 2016, após o golpe, a pasta acabou extinta, sendo recriada como Ministério dos Direitos Humanos em 2017. Em 2019, o governo Bolsonaro nomeou Damares Alves, pastora e filiada ao Republicanos, para comandá-la sob a nova denominação de Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH). “É muito importante essa questão da mudança do nome, inclusive para representar do ponto de vista das políticas”, explica Gabriela Rondon, advogada e pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética.

O estudo “A conta do desmonte – Balanço do Orçamento Geral da União 2021”, feito pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), traz um “raio x” da atual gestão, com números do orçamento de 2019, calculado ainda no governo Dilma no Plano Plurianual 2016-2019, até 2021 e uma prévia de 2022. O panorama ajuda a entender quais serão os primeiros passos do próximo governo.

Miriam Marroni foi deputada estadual e trabalhou na Secretária Geral de Governo, em 2012, junto ao ex-governador do RS, Tarso Genro (PT). Foto: AL/RS

“O Brasil deu essa oportunidade a si mesmo. Negou esse modelo, negou a visão autoritária e retoma a democracia e os princípios humanistas”, diz Miriam Marroni, psicóloga e ex-deputada estadual, convidada pela deputada federal Maria do Rosário (PT) a participar do Grupo de Trabalho (GT) de Direitos Humanos na transição de governo do presidente eleito Lula (PT). “É preciso retomar conceitos de civilidade, de democracia, de respeito, dignidade e fraternidade.” 

“É a reconstrução de uma caminhada que andava bem, que caminhava para evoluir nesses conceitos de respeito à diferença, da solidariedade, das liberdades de modo geral, tinha um processo evolutivo. No último período, esse retrocesso impactou diretamente nos direitos humanos, é o desrespeito às individualidades, ao ser humano e às suas diferenças”, avalia.

Miriam participa ativamente das discussões acerca de políticas de saúde mental do grupo e enfatiza a importância do ministério como articulador com outros setores do governo, como o Ministério da Saúde e o da Cidadania. 

“A pouca documentação a que se tem acesso mostra um ataque ao sistema único de saúde, quando mexe nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) nos seus três níveis, básico, secundário e terciário. O financiamento dessa política foi retirado e foi para as comunidades terapêuticas, que é uma política questionável, ignorando uma série de visões científicas, permeada pela religião, é preciso rever essa questão. Também observamos que colocam recursos novamente em modelos extremamente cruéis que não ajudam a incluir a saúde mental, os hospitais psiquiátricos, com eletrochoque e sedação constante.”

Para Gabriela Rondon, o papel do Ministério da Saúde também é importantíssimo nas políticas para as mulheres. “Não é só o ministério de direitos humanos ou um possível novo Ministério das Mulheres que vai precisar retomar isso, mas também com muita centralidade uma reconstrução da área técnica de saúde da mulher dentro do Ministério da Saúde.”

Os programas que buscam a igualdade racial, meta descartada do nome do ministério, sofrem cortes orçamentários desde 2015, mas a perda mais notável aconteceu a partir de 2019, quando o enfrentamento ao racismo foi excluído do Plano Plurianual 2020-2023. Mesmo com a Secretaria Nacional de Promoção da Igualdade Racial (SNPIR) ainda na ativa, o orçamento caiu muito.

Em 2021, o MMFDH autorizou um repasse de R$3 milhões para o fomento de ações afirmativas em todo o país, fortalecimento dos órgãos estaduais e municipais e para o funcionamento do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR), que divide recursos com o Conselho dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT).

Entretanto, o governo só gastou 66% do valor total destinado à área e metade foi direcionada a contas de anos anteriores. Em 2022, o recurso autorizado foi de R$3,3 milhões, quase 80% a menos do que o valor de 2019, de R$ 16 milhões.

As políticas para mulheres também sofreram mudanças a partir de 2019. O programa Políticas para as Mulheres: Promoção da Igualdade e Enfrentamento a Violência foi extinto e substituído pelo programa Proteção à Vida, Fortalecimento da Família, Promoção e Defesa dos Direitos Humanos para Todos, evidenciando a inclusão da família no nome do ministério. O programa englobaria ações para crianças e adolescentes, idosos, pessoas com deficiência e a população LGBTQIAP+.

“O que nós estamos vendo é assustador, nós já vínhamos acompanhando no governo Bolsonaro, com a ministra Damares, que mudou o nome do ministério para incluir um conceito de ‘família’ que retira da discussão a comunidade LGBT, por exemplo”, explica Miriam.

A inclusão de “família” no nome do ministério também serviu para aglutinar ideologias por trás da nova orientação política, como explica Gabriela. “As políticas supostamente voltadas às mulheres passaram a ter novamente um foco familista com muito menos atenção às necessidades específicas das mulheres, de situações de violência, e muito mais um foco em fortalecimento de vínculos familiares, que tem tudo a ver com uma agenda mais ampla desse governo Bolsonaro. É o retorno a uma responsabilização das mulheres pelo cuidado, seja das crianças, dos idosos, do ambiente doméstico como um todo, e essa ideologia e esse projeto de precarização das políticas esteve muito representado e capitaneado. É o esvaziamento do financiamento para as políticas substantivas de enfrentamento à violência e às outras políticas de direitos humanos, reforçado por esse contexto ideológico”, avalia a advogada da Anis.

O orçamento foi de R$ 488 milhões em 2021, mas somente metade desse valor foi utilizado pela pasta. Para as ações exclusivas às mulheres, o recurso foi de R$ 71,1 milhões, utilizados integralmente. Porém, quase metade desse montante serviu para pagar contas de anos anteriores. Com a Casa da Mulher Brasileira, centro de atendimento humanizado especializado no atendimento à mulher em situação de violência doméstica, o dinheiro gasto foi somente 5% do destinado em 2021.

A baixa execução financeira em 2019 e 2021 levou à abertura de um inquérito pelo Ministério Público Federal e um requerimento de investigação na Comissão de Fiscalização Financeira e Controle da Câmara dos Deputados.

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

O orçamento para a área de programas para crianças e adolescentes também sofreu quedas significativas durante a gestão de Damares. De 2019 a 2021, a diminuição foi de 47% no orçamento autorizado e os gastos foram 28% menores. Para ações de enfrentamento ao trabalho infantil e estímulo à aprendizagem profissional, a execução financeira caiu 95% em três anos. No sistema socioeducativo, o orçamento total neste mesmo período foi de R$ 13,8 milhões para R$ 1,81 milhões, 86% a menos.

“Ficou quase esquecido mas foi bastante importante, no início de 2020, uma tentativa do ministério de Damares em propor uma política de abstinência sexual, uma campanha voltada a adolescentes que seria veiculada no Carnaval, com um foco supostamente para diminuir a incidência de gravidez na adolescência em uma tentativa de aumentar a idade de início da vida sexual. Se move ideologicamente por uma perspectiva anti-científica. Gera um aumento de desinformação, um obstáculo na discussão aberta e sincera em linguagem adequada para adolescentes sobre a sexualidade, a diversidade, a violência e também consentimento, a possibilidade de identificar o que são relações saudáveis ou não. A possibilidade de, de fato, fornecer ferramentas para esses adolescentes decidirem mais automaticamente sobre as suas próprias vidas e se protegerem. Já tá mais que provado que é com a educação sexual integral que você atinge isso e não abstinência. Felizmente, houve um recuo da campanha que seria feita em 2020 depois da grande repercussão, mas isso também é sintomático do que viria com a pandemia, de mais políticas, falas e posicionamentos anti-científicos”, conta Gabriela. 

Além dos problemas orçamentários, a gestão de Damares Alves no MMFDH foi repleta de polêmicas e ataques aos direitos humanos. Logo após a posse de Bolsonaro, as redes sociais foram tomadas pela repercussão de um vídeo de Damares afirmando que “menino veste azul e menina veste rosa”, explicado pela mesma como uma metáfora contra a “ideologia de gênero”. Também em 2019, em uma entrevista com a pastora Cynthia Ferreira, do Portal Fé em Jesus, a ex-ministra disse que a igreja evangélica perdeu espaço quando deixou a teoria da evolução entrar nas escolas.

Em 2021, uma reportagem da Folha de S. Paulo mostrou que Damares agiu diretamente para tentar impedir o aborto autorizado pela Justiça de uma menina de 10 anos que foi estuprada por um tio, no Espirito Santo. Para Gabriela Rondon, foi uma cruzada ideológica antiaborto e uma das pautas em que Damares mais ganhou terreno. “Essa vinculação com o caso do Espírito Santo foi noticiada, mas infelizmente ainda não teve um encaminhamento institucional e jurídico de responsabilização do próprio ministério.”

Já fora da pasta, em outubro deste ano, Damares disse, em um culto na igreja Assembleia de Deus, em Goiânia, que crianças de três e quatro anos haviam sido violentadas e estupradas na ilha de Marajó e que “nos últimos sete anos explodiu o número de estupros de recém-nascidos”, alegando que o MMFDH teria imagens de crianças de oito dias sendo estupradas. O ministério foi acionado pelo Ministério Público Federal a apresentar provas, já que nenhuma denúncia formal a respeito foi realizada.

“De fato existem muitas camadas de desmonte, de retrocesso, de erosão mesmo, da pauta de proteção aos direitos humanos em geral, que vão precisar ser reconstruídas nesse novo governo e que são muito representadas pelo que foi o ministério de Damares”, diz Gabriela.

Damares Alves foi eleita senadora pelo Distrito Federal com 714.562 votos (44,98% dos votos válidos).


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