Internacional
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7 de dezembro de 2022
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17:21

Condenação de Cristina Kirchner: ‘É muito mais escandaloso do que o Lawfare contra Lula’

Por
Luís Gomes
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Cristina Kirchner e Lula. Foto: Reprodução/Flickr Cristina Kirchner
Cristina Kirchner e Lula. Foto: Reprodução/Flickr Cristina Kirchner

A vice-presidente da Argentina, Cristina Kirchner, foi condenada nesta terça-feira (6) a seis anos de prisão em um caso de corrupção conhecido no país como “Causa Vialidad”. Ela também foi condenada a perder os direitos políticos para sempre. Kirchner ainda pode recorrer das condenações e possui foro privilegiado, o que faz com que dificilmente seja presa.

Cristina foi condenada pela acusação de ter chefiado uma organização criminosa que teria desviado dinheiro de obras públicas realizadas na província de Santa Cruz, berço político dela e do falecido ex-presidente Néstor Kirchner, para favorecer o empresário local Lázaro Báez. Ela também era acusada por associação ilícita, mas foi inocentada.

Jornalista e professor da Universidade de Buenos Aires (UBA) e da Universidade Nacional de La Plata (UNLP), o argentino Gustavo Veiga pontua que a condenação era previsível diante do contexto em que o caso foi construído. O professor diz que a posição kirchnerista é de que Cristina é vítima do “partido judicial”. Entre os argumentos da defesa está o de que uma presidenta em exercício não poderia ser acusada de associação ilícita por ações conduzidas como chefe de Estado.

“Politicamente, é algo similar ao que aconteceu com Lula, no Brasil, com Rafael Correa, no Equador, e com outros presidentes da América Latina. Ou seja, o próximo passo é a inabilitação para a candidatura presidencial de Cristina. É uma condenação pública que vai resultar na inabilitação”, diz.

Veiga diz que a diferença entre os casos de Kirchner e as condenações da Lula é que a Justiça argentina já é vista com desconfiança pela população. “Aqui, os tribunais superiores são muito desprestigiados. Entre os poderes do Estado, a Justiça é a que tem a pior imagem. No Brasil, com exceção dos bolsonaristas, que consideram o STF um tribunal desprestigiado, para a população em geral a Justiça não é desprestigiada.”

No último final de semana, uma reportagem do Página 12 trouxe à tona mensagens de um grupo privado de Telegram em que juízes, ex-agentes de inteligência, políticos oposicionistas e empresários combinavam para esconder as provas de uma viagem em um voo fretado para um encontro na casa de um bilionário britânico na localidade de Lago Escondido, na Patagônia argentina. As mensagens revelam que entre os participantes estava o juiz federal Julián Ercolini, que foi responsável por conduzir o processo contra Cristina. Um caso também considerado similar ao vazamento de mensagens entre o ex-juiz Sérgio Moro e os procuradores da Lava Jato.

Veiga avalia que o vazamento de conversas de Telegram contribui para o desprestígio da Justiça argentina. “É evidente que essas escutas são produto de trabalho de inteligência. Aqui, os serviços de inteligência são uma parte importante para entender como atua a Justiça. A Justiça trabalha muito com a inteligência e o Macri foi a maior expressão disso, porque espionava a sua própria família. Eu creio que os vazamentos das conversas dos juízes são produto de espionagem. Eles espionam os políticos, espionam os empresários, mas não tem ninguém que está livre de espionagem”.

Para o jornalista brasileiro Daniel Oiticica, que atuou como correspondente na Argentina por 20 anos, a condenação de Cristina é um caso “mais escandaloso” de lawfare do que o sofrido pelo presidente eleito Lula.

“As evidências de que é lawfare são muito mais claras. Mas tem um detalhe, são mais evidentes para quem se informa, para quem vai no fundo da questão. Se você ficar só na leitura de manchetes e leads, talvez tenha mais dificuldade de entender, porque é muito mais complexa a trama. É diferente de dizer que o Lula é dono de um apartamento quando ele não é, em que fica comprovado que ele é sem ser.”

Daniel aponta que a acusação alegou que os 12 anos de governos Kirchner concentraram os recursos de 51 obras públicas no empresário Báez, e que de fato ele foi o maior destinatário de recursos públicos em Santa Cruz. Contudo, diz que, se levada em conta a totalidade de recursos destinados para obras públicas nos governos Kirchner, empresários ligados à oposição e a Macri receberam somas muito superiores. Além disso, pontua que todas as contratações passaram por processos licitatórios controlados por órgãos de fiscalização.

“Só que a denúncia não leva em conta que todos os procedimentos para designação de obra pública têm que ser aprovados pelo Congresso. Todo o dinheiro que foi entregue à empresa acusada de desviar dinheiro público teve aprovação do Congresso”, diz. “Não estamos falando de orçamento secreto, mas de orçamento aprovado”, afirma.

A promotoria acusava Cristina, Báez e outras onze pessoas de orquestraram um esquema criminoso que desviou recursos de algumas das 51 obras contratadas junto ao empresário, destacando que diversas delas estouraram o orçamento ou não foram concluídas. A acusação também afirmava, entre outras coisas, que os Kirchner pressionaram o Congresso a aprovar as obras.

A defesa da presidente nega as acusações e, na semana passada, divulgou um documento em que rebate as “20 mentiras da Causa de Vialidad”.

Oiticica destaca que há vários “escândalos” que colocam em suspeição as autoridades responsáveis pelo processo, como justamente o caso do encontro secreto. Ele cita ainda o fato de que um dos juízes responsáveis pela condenação, Rodrigo Giménez Uriburu, é colega de time de futebol de um dos promotores responsáveis pela acusação, Diego Luciani. Ambos participam de um time amador chamado Liverpool. E, além disso, parte dos jogos da equipe foram realizados ao longo dos anos no sítio do ex-presidente Maurício Macri, um dos principais nomes da oposição ao governo de Alberto Fernández.

A defesa de Cristina pediu o afastamento do juiz do processo, mas foi negado. “Isso já é um escândalo”, diz Oiticica.

Outro ponto que ele considera “absurdo” no processo é o fato de que a acusação alegou que Cristina viajou para Santa Cruz em 30 de novembro de 2015 para se encontrar com Báez com o intuito de destruir provas de corrupção. No julgamento, a acusação teria inclusive usado imagens de um avião que estaria sendo usado por Cristina. Contudo, no dia em que a reunião teria ocorrido, a vice-presidente participou de um evento público em outra província, Rio Negro, que foi transmitido o vivo para todo o País.

Este caso é um dos listados nas “20 mentiras” pela defesa de Cristina.

“Esse lawfare funciona muito na Argentina, assim como funcionou no Brasil, porque faz parte de um tripé: a força política de direita, o Poder Judiciário e a mídia. A grande mídia na Argentina está sempre contra o kirchnerismo”, diz Oiticica.

Nesta quarta-feira, após a confirmação da condenação de Cristina, o resultado foi divulgado em tom de celebração pelo principal grupo de imprensa do país, o Clarín. Gustavo Veiga pontua que os grandes meios de comunicação da Argentina se apoderaram de muitos veículos ao longo dos anos 1990, tendo acesso a licitações facilitadas durante o governo de Menem, o que levou à consolidação, por exemplo, da televisão a cabo sob comando do grupo de Clarín.

Capa do Clarín no dia seguinte à condenação de Cristina. Foto: Reprodução

Estas relações, contudo, seriam ainda mais antigas, uma vez que o Clarín e outros veículos tinham relações empresariais diretas com a ditadura argentina. “Essa sociedade permitiu ao grupo Clarín, por exemplo, a compra de papel a um preço subsidiado. O grupo começou a comprar cada vez mais empresas concorrentes e se constituiu em um poder de fato, que começa a apoiar aqueles que lhe dão benefícios estatais”, diz.

Veiga destaca que mesmo o governo de Néstor Kirchner concedeu benefícios aos meios de comunicação, incluindo o Clarín, que permitiram a consolidação do mercado. “Quando o governo Cristina começa os enfrentamentos com o Clarín, o poder econômico do grupo já estava consolidado. E os peronistas que hoje sofrem com as pressões do Clarín, ajudaram no seu crescimento”.

Oiticica destaca que os enfrentamentos com a imprensa estão ligados, entre outras coisas, ao fato de que governo de Cristina aprovou a Lei de Meios, que ficou famosa no Brasil e é citada como exemplo para democratizar o controle do mercado de audiovisual do Brasil, mas que ela nunca foi colocada em vigor. Destaca que, ainda no governo Cristina, decisões judiciais impediram que ela fosse implementada e, quando Macri chegou à presidência, ele anulou a legislação.

“Não existe lei de mídia funcionando lá e o espectro é totalmente dominado por dois grupos de comunicação que são antigoverno”, diz.


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