Geral
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26 de março de 2024
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15:58

Servidores da Justiça alertam para riscos e limites da Inteligência Artificial em processos e sentenças

Por
Luciano Velleda
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Evento contou com grande participação de membros do sistema de Justiça. Foto: Luciene Leszczynski/ Divulgação
Evento contou com grande participação de membros do sistema de Justiça. Foto: Luciene Leszczynski/ Divulgação

Quais os riscos e até onde pode ir o uso da Inteligência Artificial no âmbito do judiciário brasileiro? As dúvidas no horizonte e respostas ainda em estágio inicial de elaboração marcaram a realização do I Encontro dos Oficiais de Justiça do Rio Grande do Sul, promovido pela Associação dos Oficiais de Justiça do RS (Abojeris), ocorrido no último final de semana no Hotel Intercity Canoas.

Sob o tema “O uso de IA e seus riscos para a Justiça”, o encontro foi realizado tendo como contexto o comunicado recente do Tribunal de Justiça de Santa Catarina de que utilizará a Inteligência Artificial para fazer minutas de sentenças e decisões. O anúncio causou preocupação. 

“Se a Inteligência Artificial vai ser utilizada nesse tipo de setor do Judiciário, imagina o que vai ser nos demais”, ponderou Valdir Bueira, presidente da Associação dos Oficiais de Justiça do RS (Abojeris), ressaltando o pouco conhecimento existente sobre uma ferramenta cujo domínio é de poucas empresas privadas, as chamadas “big techs”. 

Ele explica que um dos objetivos do encontro foi ouvir a maioria dos segmentos que estão envolvidos com o sistema de Justiça. Na sua análise, cada segmento trouxe suas preocupações sobre o tema, sem haver unanimidade se o uso da Inteligência artificial no judiciário é bom ou ruim. A única certeza é a de não haver condições de frear o revolucionário processo tecnológico e a necessidade de estudar mais sobre o assunto. 

“É uma coisa que veio para ficar, não temos condições de evitar que isso se estabeleça, inclusive no próprio judiciário, mas temos que ter mecanismos de controle e limites”, afirmou. 

A concordância veio ainda na preocupação de como a ferramenta será utilizada e quais serão os limites. Um dos receios é com a segurança dos dados das pessoas que estão nos processos e que serão fornecidos às plataformas de Inteligência Artificial. “Não se sabe se esses dados vão ser utilizados somente no âmbito dos processos ou se eles podem ir além”, ressaltou, destacando que as empresas de tecnologia visam lucro e costumam usar os dados das pessoas para alcançar esse objetivo.

Segundo o desembargador Sérgio Miguel Achutti Blattes, 2º vice-presidente do Tribunal de Justiça do RS (TJRS), a Inteligência Artificial é uma ferramenta e não há intenção do tribunal gaúcho de que ela substitua os seres humanos, sejam juízes ou funcionários. Já os representantes da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris) e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) ressaltaram o princípio de que “pessoas sejam julgadas por pessoas” investidas na condição de juízes. 

“Não pode substituir essas pessoas julgadoras por máquinas que não têm sensibilidade e que não conseguem captar a subjetividade”, afirma Bueira. Ele avalia que o algoritmo pode ser “treinado” para identificar e sentenciar determinados segmentos da sociedade mais vulneráveis. “Daqui a pouco, elas não serão interessantes para o reconhecimento do algoritmo. Temos a preocupação de que a Justiça fique seletiva.”

O futuro dos oficiais de Justiça e a eventual substituição do trabalho humano por programação de computador foi um dos aspectos discutidos no evento. De acordo com o presidente da Abojeris, os oficiais de Justiça tratam diretamente com as pessoas nos mais diversos lugares, desde o centro da cidade até as periferias e, muitas vezes, levam para dentro do processo informações importantes para o juízes utilizarem, com potencial de dar outro rumo para processos em busca de justiça. 

Ainda assim, o encontrou deixou no ar o entendimento de que a Inteligência Artificial cortará postos de trabalho. A dúvida é em que dimensão isso pode acontecer.

O judiciário precisa garantir maior controle sobre os algoritmos, sobre o treinamento para o uso da base de dados, assim como todo o processo de desenvolvimento das soluções tecnológicas que utiliza. Essas foram algumas das recomendações apresentadas ao final do evento que discutiu o uso da Inteligência Artificial na Justiça. 

Outro tópico acordado é a necessidade dos trabalhadores do judiciário integrarem a comissão de estudos e implementação do uso de Inteligência Artificial e outras ferramentas tecnológicas no âmbito da Justiça. A Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) já têm assento na comissão. 

O sociólogo Sergio Amadeu, doutor em Ciência Política com significativo trabalho nas áreas de tecnologia da informação, sociedade da informação e cidadania digital, foi um dos especialistas trazidos para debater o tema. Para Amadeo, é preciso destacar os responsáveis pelos sistemas a fim de garantir maior transparência na fiscalização, monitorá-los para detectar e corrigir constantemente suas prováveis falhas. O especialista questiona se a base de dados dos processos da Justiça brasileira deve ser entregue para ser operacionalizada pelas “big techs”, empresas estrangeiras de armazenamento de dados. 

Amadeo resume a Inteligência Artificial como um tipo de tecnologia baseada em padrões de dados. Padronização essa que serve para agilizar processos a partir da automatização. “Não são inteligências, são extratores de padrões, baseados numa enorme quantidade de dados”, aponta. Nesse sentido, ele questiona a entrega das informações para que seja utilizada para alimentar sistemas de inteligência operados por corporações internacionais. 

Por envolver grande capacidade tecnológica e especializada, outra das sugestões apresentadas por Amadeo é estabelecer parcerias com as universidades brasileiras. “Por segurança, por seu compromisso com a nação e com a nossa inteligência coletiva, com a proteção da tecnodiversidade, o judiciário deve construir infraestrutura soberanas para o armazenamento e processamento de seus dados, deve se ligar às universidades brasileiras para desenvolver soluções automatizadas que mantenham nossa independência frente aos oligopólios digitais”, afirmou Amadeo.

A partir do encontro, a Abojeris aprovou uma Carta de Intenções com sugestões a serem adotadas pela administração da entidade e serem defendidas junto aos órgãos da Justiça, que precisarão encontrar o equilíbrio entre os prós e contras do uso da Inteligência Artificial.


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