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28 de março de 2024
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17:15

Denúncias de tortura: BM fez ao menos 146 abordagens violentas desde 2023

Por
Bettina Gehm
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Quatro policiais acusados de agredir um cidadão em Imbé estão afastados da função, mas em liberdade. Foto: Laura Guerra / Governo do RS
Quatro policiais acusados de agredir um cidadão em Imbé estão afastados da função, mas em liberdade. Foto: Laura Guerra / Governo do RS

“A justificativa deles foi que era uma abordagem de rotina. Me botaram na parede, me revistaram e viram que eu não tinha nada. Disseram que iam fazer a averiguação na delegacia. Me algemaram, me botaram na viatura com um saco plástico na cabeça. Me sufocaram, me levaram para o meio do mato, me agrediram fisicamente. Fizeram coisas que eu não posso falar, porque me sinto envergonhado”.

O relato acima é de Tiago*, 43 anos, morador de Tramandaí, no litoral gaúcho. Ele foi abordado por quatro agentes da Brigada Militar (BM) no dia 11 de março em Imbé, cidade vizinha de onde mora. Após sofrer agressões físicas e sexuais, Tiago ficou desacordado e foi abandonado no mato.

Esse é um dos 146 casos de violência em abordagens da BM que teriam ocorrido desde janeiro de 2023 e foram denunciados à Comissão de Cidadania e Direitos Humanos (CCDH) da Assembleia Legislativa do RS. Algumas dessas denúncias são coletivas, portanto o número de pessoas vitimadas por abordagens truculentas é maior. A CCDH estima cerca de 300 cidadãos ameaçados e/ou agredidos.

 

 

Conforme a CCDH, todos os casos passam por avaliação técnica e pela escuta ativa das denúncias. Muitas agressões denunciadas ocorrem à noite e sem gravações. Os relatos são filtrados pela coerência nos depoimentos, com o cruzamento de diferentes versões e o contato com testemunhas. “É inadmissível que servidores do Estado, que deveriam estar protegendo os cidadãos e cidadãs destas cidades, estão cometendo atos que vão contra a lei”, afirma a deputada estadual Laura Sito, presidente da Comissão. A CCDH tem buscado informações nas corporações e junto à Ordem dos Advogados do Brasil, bem como no Ministério Público gaúcho, que conta com um Centro de Apoio Operacional de Direitos Humanos.

Tiago tem passagem pela polícia e está em liberdade condicional, conforme a advogada que acompanha o caso, Shaiane dos Anjos. “No dia 14 de janeiro, essa mesma guarnição invadiu a casa do Tiago, bagunçou tudo. Invadiu sem mandado, atrás de arma e droga, e não acharam nada”, afirma a defesa. Na época, temendo represálias, a advogada orientou Tiago a não denunciar a invasão à sua casa.

Sobre o dia 11 de março, Tiago recorda: “Eles acharam que eu estava morto e me largaram. Quando eu acordei, ainda estava com o saco plástico no rosto”. Ele conta que não conseguiu levantar, porque estava com as pernas e braços machucados. Precisou se arrastar por cerca de 300 metros até uma praça, onde foi socorrido por um motoqueiro que o levou até a casa onde mora com a mãe. “A gente não podia chamar a ambulância porque eles iam chamar a Brigada, se a Brigada viesse ia ser arriscado para mim e para ele. Em casa, minha mãe chamou um Uber e a gente foi direto para o posto de saúde”, relata. As fotos a seguir foram enviadas ao Sul21 pela advogada de Tiago.

Duas semanas depois da agressão, as marcas estão longe de sumirem. “Sinto muita dor na coluna, estou com a costela fraturada. Acho que estou com problema no rim, eu andava urinando sangue. Minha mão eu não mexo. Quando passar tudo isso, vai ter sequelas. Como eu vou me sustentar, como eu vou viver?”, questiona Tiago.

Os quatro policiais acusados de agredir Tiago estão afastados da função, mas em liberdade. O caso está sendo investigado pela corregedoria da BM. “Corregedoria de farda, pelo amor de Deus, vão puxar para o lado dos policiais”, diz Tiago.

Em Caxias do Sul, na Serra Gaúcha, moradores do bairro Euzébio Beltrão de Queiroz convivem com uma série de violações por parte da BM. É o que denuncia o presidente da associação de moradores do bairro, Fernando Morais. “A Brigada entra em residências sem mandado, ameaça e tortura alguns moradores. Tem provas, tem fotos. A maioria das abordagens acontece no período da noite, tanto é que eles danificaram a iluminação pública, quebrando algumas lâmpadas, para ninguém conseguir ver”, relata.

Conforme Fernando, as abordagens violentas no bairro, que fica na periferia da cidade, se intensificaram depois de uma ocorrência específica. Em fevereiro, um homem foi morto a facadas no bairro Rio Branco, região de classe média alta em Caxias. “Depois dessa morte, houve um pedido da gestão municipal para que houvesse um policiamento mais ostensivo da BM, principalmente a respeito das guerras de facções”, conta. “A polícia já vinha fazendo algumas abordagens devido a essa guerra do tráfico, mas depois disso, mudou”.

O bairro Euzébio Beltrão de Queiroz tem o histórico de ser um lugar violento. “A BM fala que é pelo histórico da região, mas há muito tempo não é como no início do bairro. Trinta, quarenta anos atrás. Mas sempre foi uma periferia, praticamente no centro da cidade, com muito trânsito de pessoas em drogadição”, diz o representante dos moradores.

As agressões denunciadas por Fernando são variadas. “Eles conseguiram quebrar os dois joelhos de um rapaz a marteladas. Botavam saco na cabeça das pessoas, batiam. ‘Abriram’ a cabeça de uma mulher com palmadas. Chegaram tirar uma criança de três anos de dentro do berço e ameaçaram a mãe, que iam ‘consumir’ com o filho, caso ela não apontasse o ponto de venda [de drogas]”, afirma. Fernando diz que foi chamado à Unidade Básica de Saúde que atende a região após a polícia ter deixado duas mulheres completamente nuas e aplicado choques elétricos nas partes íntimas delas.

O presidente da associação de moradores enviou fotos de algumas ocorrências ao Sul21:


Até o momento, a corregedoria da BM não agiu sobre o caso. “Eu, particularmente, não tenho problemas com a Brigada em si, com a corporação”, alega Fernando. “São algumas pessoas más. A nossa briga não é para extinguir a ação da BM dentro do bairro. O trabalho deles é importante, mas a gente não quer que aconteça o abuso”.

Tiago, de Imbé, não sai mais de casa porque se sente ameaçado. “Quando eu estava dando depoimento na Delegacia Civil de Imbé, eu passei mal e chamaram a ambulância. Chegando no hospital, do nada, eles [os policiais] apareceram lá. Um deles passou por mim, me olhou e disse: ‘bom saber onde tu está’”, relata. Ele conta também que, ao sair de Uber do hospital, foi seguido pela viatura por algumas quadras. “Nós não temos para onde ir”, diz. “Eu me criei aqui, moro aqui desde 1985. E nunca aconteceu isso, mas anda acontecendo muito. Anda aparecendo gente morta e estão dizendo que são pessoas que traficam, que são bandidos. Não sei para onde eu vou, para quem eu peço ajuda. Sinceramente, estou perdido”.

Com Fernando, as ameaças começaram depois que ele levou a denúncia à Câmara de Vereadores de Caxias do Sul. “E segue acontecendo. Eu tive notícia de que eles andavam ali pelo bairro perguntando de mim para os moradores. Queriam saber onde eu morava, que eles estariam com uma mochila e que aquilo que está dentro seria meu”, relata.

Shaiane, a advogada de Tiago, também teme. Ela afirma que, nas audiências, a guarnição contou diversas versões do acontecido. Vídeos das oitivas mostram os policiais atacando Shaiane diretamente: “Ela é advogada de facção. A gente sabe pelas próprias pessoas que a gente aborda e prende”. “Advogados de facção normalmente fazem muita denúncia. Nós acreditamos que ela seja”. “Teve uma outra ocorrência em que ela era advogada de um dos presos. Na delegacia, ela começou a se insinuar para nós de maneira vulgar. Mostrando decote, mostrando as pernas, e começou a vir com perguntas da ocorrência. Não me recordo com exatidão quando foi isso”, dizem em alguns trechos. “Eles estão tentando imputar à minha conduta, dizendo que eu sou advogada faccionada. Para que, se algo vier a acontecer comigo, possam dizer que a facção fez algo contra mim. Esse é o meu medo”, explica a advogada.

A BM foi procurada, mas não se manifestou sobre os casos expostos até o fechamento desta reportagem. O espaço segue aberto.

*Tiago é um nome fictício usado para preservar a identidade da fonte.


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