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13 de março de 2024
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16:18

Ciclovias de Porto Alegre não chegam a 20% da meta de 2009 e são um convite a não pedalar

Por
Bettina Gehm
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Ciclovias danificadas dificultam o uso para ciclistas. Foto: Luiza Castro/Sul21
Ciclovias danificadas dificultam o uso para ciclistas. Foto: Luiza Castro/Sul21

Foi no início de 2022 que Henrique Lindemann, estudante de Engenharia da Computação na UFRGS, começou a usar a ciclovia da Av. Ipiranga para pedalar até as aulas no Campus do Vale. “Eu moro numa parte da cidade que não passa ônibus nem lotação, então fazia uma grande parte do meu percurso a pé. A bicicleta acelerou isso bastante, e me fazia muito bem”, lembra.

Mas a ciclovia que Henrique usava foi interditada pela Prefeitura, no ano passado, após fortes chuvas que danificaram o talude (paredão em declive, feito de pedras, que cerca o curso d’água) do arroio Dilúvio. Em julho de 2023, uma parte do talude cedeu, perto do Planetário. Em setembro, mais um trecho da ciclovia desabou, próximo ao cruzamento com a avenida Silva Só, sentido bairro-Centro. Um primeiro trecho já havia desmoronado em junho, perto da perto da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), e estava em reconstrução quando os outros dois sofreram avarias.

A primeira alternativa encontrada por Henrique foi usar a Av. Bento Gonçalves. “Mas eu logo desisti de ir por ali, porque é realmente muito perigoso. A rua é estreita e os veículos passam ‘tirando fino’, principalmente caminhão”, relata. Conectando a Av. Ipiranga com o Campus do Vale, um trecho de ciclovia na Av. Bento Gonçalves também é inviável. “Tem partes com esgoto na ciclovia”, conta o estudante. “Não tem o que fazer, a não ser entrar na faixa dos carros. Não tem calçada. E os carros passam ali a 60 por hora, então também é perigoso.Decidi que não vale ir de bike por conta do estresse e do constante risco de ser atropelado por ônibus ou carros que não respeitam os ciclistas”, diz.

Os problemas não se restringem às ciclovias mais antigas de Porto Alegre. Nas obras da Av. Tronco, localizada no bairro Santa Tereza, está sendo feita uma ciclofaixa – que é quando parte da pista ou da calçada é destinada às bicicletas e delimitada por sinalização específica. No caso da Av. Tronco, a ciclofaixa se limita a uma linha vermelha pintada em cima da calçada, que é bastante irregular. Enquanto a rua asfaltada é perfeitamente nivelada, a calçada tem desníveis e trechos estreitos. “É justo tirar quase toda a área dos pedestres e nenhuma dos carros? Por que a duplicação da avenida não previu um local adequado para as bicicletas?”, questionou Henrique no e-mail enviado ao Sul21 onde sugeriu esta reportagem.

 

 

Em nota, a Secretaria Municipal de Mobilidade Urbana (SMMU) explica que o Complexo Tronco – projetado inicialmente para a Copa de 2014 – teve percalços em sua execução. “O projeto previa alargamento considerável na calçada, para receber área de serviço, área para ciclovia bidirecional e passeio para pedestres. Com os diversos imprevistos ao longo da execução, foi necessário adaptar vários trechos, principalmente no espaço cicloviário. Os trechos em que as calçadas ficaram com uma largura insuficiente para abranger ciclovia e faixa de pedestres estão sendo adaptados para áreas compartilhadas entre pedestres e ciclistas, como está previsto no Manual de Sinalização do Conselho Nacional de Trânsito”.

A ciclovia da Ipiranga foi liberada, em janeiro deste ano, somente no trecho que vai da Av. Edvaldo Pereira Paiva até a Av. João Pessoa. A liberação do restante, conforme a SMMU, está ligada à reconstrução do talude. “Em alguns trechos, o Dmae trabalha no talude e a ciclovia será reconstruída após essa recuperação. Outros trechos são monitorados pela força tarefa criada no ano passado, que envolve as secretarias de Mobilidade, de Obras, de Serviços Urbanos, Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC) e Dmae”, frisa a nota.

O Dmae informou à reportagem que ainda não contratou a terceirizada que fará a reconstrução do talude na Av. Ipiranga. Sem previsão de data, a nota informa que o edital de licitação ainda não está pronto.

Entre o Centro Histórico e o bairro Bom Fim, a Av. Loureiro da Silva tem uma ciclovia que, na esquina com a Sarmento Leite, vira uma ciclofaixa na calçada. Neste ponto, a faixa de tinta que demarca o espaço dos ciclistas está desgastada, quase sumindo. O trajeto é utilizado diariamente pelo entregador Bruno Roberto das Neves, de 21 anos, que usa a bicicleta para trabalhar e para chegar na autoescola. Ele está tirando carteira de motorista pois quer trocar de meio de transporte. “Acho que a ciclovia deveria ficar diretamente na pista ou na calçada, não mesclar isso. A ciclovia sobe para a calçada só por causa de uma curva à direita que o carro pode fazer e o ciclista acaba perdendo a preferência”, explica. “Normalmente eu circulo mais na via, então eu me coloco em risco porque eu forço os veículos a me darem a preferência. Os carros não passam por cima de ninguém por querer, então a gente precisa ser visto”, afirma Bruno.

O mesmo problema de desgaste na pintura da ciclofaixa também acontece em trechos da Av. Érico Veríssimo, como em frente à escola Mané Garrincha. A SMMU diz que a manutenção dessa ciclovia está na programação da EPTC para este ano, mas não respondeu ao questionamento sobre manutenção na Av. Loureiro da Silva.

 

 

“Em relação às outras capitais, até estamos bem. Há um padrão baixo no Brasil, tanto de infraestrutura, de ciclovias, quanto de outras políticas de mobilidade sustentável”, afirma o professor da UFRGS Julio Celso Borello, que tem doutorado em Engenharia de Transportes. “As cidades grandes, globais, como São Paulo e Rio, têm que se mostrar para o mundo de alguma maneira. Então, elas têm que seguir essa pauta sustentável de um jeito mais forte, mas nas demais cidades temos uma baixa implantação de ciclovias”, diz.

Ciclovias, paraciclos, iluminação – em Porto Alegre essa infraestrutura é mal feita, conforme Borello. “Tem um problema de qualidade, de fazer as coisas bem feitas. Na minha interpretação, a gestão atual da cidade não se filia a essa mentalidade de mobilidade saudável, de bicicletas. É um prefeito carrocêntrico. A prefeitura comprou usinas de asfalto, se orgulha de fazer uma coisa altamente poluente para que as pessoas possam andar de carro”, completa o professor.

Será elaborado um novo Plano Diretor Cicloviário em Porto Alegre. A previsão da SMMU é que o edital para contratação do estudo seja lançado ainda no primeiro semestre de 2024 .A pasta informa que os técnicos estão realizando os últimos ajustes no documento que irá para publicação. O plano está em debate há pelo menos dois anos: ao longo do segundo semestre de 2022, a Prefeitura reuniu contribuições em encontros com ciclistas, comerciantes e outros representantes da sociedade civil.

Em 2022, a Prefeitura usou o Dia Mundial do Ciclista (comemorado em 15 de abril) para anunciar a meta de 100 km de ciclovias até 2024. O final deste ano encerra também o primeiro mandato de Sebastião Melo (MDB). Questionada se a meta chegará a ser cumprida, a SMMU disse que, a partir de 2022, “foram feitas reuniões com diversos segmentos para levantar as principais necessidades e foram priorizados trechos em que há a possibilidade de realizar conexões. Adotou-se a conduta de diálogo com a comunidade antes do começo da intervenção. Esse diálogo foi realizado nas avenidas Sertório e Nilo Peçanha e seguirá ocorrendo ao serem implantados novos trechos”.

Até o momento, a Prefeitura deve trabalhar com base no Plano Diretor Cicloviário Integrado (PDCI) aprovado em 2009, cuja meta era que a Capital contasse com 496 km em estrutura cicloviária. Porto Alegre tem hoje 86 km implantados – o que representa 17% da meta inicial – e 4 km em implantação.

Um dos instrumentos que o documento trouxe em 2009 é a construção de ciclovias proporcionais ao número de vagas de estacionamento de automóveis, como contrapartida para grandes empreendimentos. Por outro lado, foi revogado um artigo que obrigava a Prefeitura a aplicar por ano, no mínimo, 20% da arrecadação com multas de trânsito na construção de ciclovias e em programas educativos. Conforme reportagem da Matinal, a gestão municipal ficou dependente da iniciativa privada para financiar a construção de todas ciclovias em Porto Alegre desde 2017. Os 15 trechos construídos até março do ano passado foram executados em contrapartida de empreendimentos de grande porte.

“O novo plano tem que ter metas objetivas, mensuráveis”, ressalta o professor Borello. “Precisa constar quantos quilómetros, de que padrão, de que qualidade, até que data. Mas isso também não é suficiente, porque não se cumpre as metas. O nosso problema não é plano, vai ser um plano bom. Mas se a Prefeitura não cumprir, não adianta nada. E a qualidade das coisas que é proposta também não é boa, não tem fiscalização, não tem cuidado com pavimento, iluminação, com as árvores no caminho”, afirma.

A Equipe de Indicadores de Mobilidade (EIMOB) da EPTC divulga um mapa, atualizado pela última vez em fevereiro deste ano, que mostra a estrutura cicloviária já implantada e a que consta no PDCI:

 

Tendo deixado de ir às aulas de bicicleta, Henrique passou a fazer parte de seu trajeto a pé e a outra usando o transporte público. Ele leva uma hora e meia, quando os ônibus não atrasam, para vencer o percurso que antes fazia em 50 minutos. O estudante espera que a Prefeitura comece a “tratar o ciclista de maneira digna. Uma boa estrutura é essencial para isso, mas as ciclovias agora estão sendo feitas onde dá, e não onde são necessárias. Não de maneira que convidem as pessoas a andar. Se a gente constrói ciclovias que não são seguras, que as pessoas não se sentem à vontade, não dá certo”, desabafa. “Quando se está de bike, tu percebe muito mais a comunidade. Tem interações que tu não teria dentro de um carro. Não tem aquela raiva, aquele estresse no trânsito. Isso não acontece quando se é forçado a andar no meio dos carros, mas no geral te faz bem”, afirma.


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