Educação
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16 de março de 2024
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08:05

Primeira mulher indígena formada em Direito na UFRGS quer dar retorno ao seu povo

Por
Bettina Gehm
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Agora formada, Viviane quer ingressar no mestrado. Foto: Arquivo pessoal
Agora formada, Viviane quer ingressar no mestrado. Foto: Arquivo pessoal

A formatura da turma de Ciências Jurídicas e Sociais da UFRGS, celebrada nesta sexta-feira (15), teve entre os formandos a primeira mulher indígena a concluir a graduação na Faculdade de Direito. Viviane Belini nasceu no Território Indígena de Votouro, na região norte do Rio Grande do Sul. Em 2017, passou no vestibular pelo Processo Seletivo Específico para Ingresso de Estudantes Indígenas (PSEI) e, aos 18 anos, começou seu percurso como aluna da Federal.

“Eu me identifiquei com o Direito porque é um curso em que, até mesmo na academia, a gente consegue dar algum tipo de retorno para as nossas comunidades”, conta a recém graduada. “O curso permite ter uma atuação mais direta com a demanda dos povos indígenas, e eu quero poder dar um retorno para o meu território”.

Viviane recebeu nota máxima em seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), intitulado “O protagonismo feminino Kaingang: entre os costumes e o Direito brasileiro”, apresentado à banca avaliadora em 19 de fevereiro. “Escrevendo o trabalho, pude perceber que as bibliografias sobre a temática dos povos indígenas – principalmente do povo Kaingang – têm uma visão da mulher Kaingang bastante superficial. Que não compreende toda a complexidade que envolve os papéis sociais e políticos atribuídos a elas”, afirma a bacharel em Direito.

Para a pesquisa, Viviane realizou entrevistas com uma família de indígenas composta principalmente por mulheres. “Há uma diferença geracional entre essas três mulheres indígenas. Elas tinham conceitos de funções e papéis da mulher dentro do território bastante distintos”, explica. “Mesmo com o papel que naturalmente era atribuído a elas, em que elas ficavam no âmbito doméstico, elas sempre foram politicamente ativas e envolvidas nas decisões de seus territórios”.

Foram a colonização e a imposição do modo de vida ocidental fizerem tais atribuições domésticas serem consideradas submissas, o que acabou inferiorizando as relações e articulações que as mulheres tinham dentro e fora de seus territórios. “Pude ver que, nos últimos anos, as mulheres indígenas acabaram ganhando um pouco mais de protagonismo dentro dos movimentos indígenas. Nesses espaços, elas conseguem manter a sua cultura e também fazer com que suas demandas sejam escutadas”, destaca Viviane.

Agora formada, ela quer ingressar no mestrado. “Pretendo seguir no estudo das complexidades que envolvem a aplicação da Lei Maria da Penha dentro dos territórios indígenas”, diz. Ainda na graduação, Viviane participou do Serviço de Assessoria Jurídica Universitária da UFRGS, tendo atuado no núcleo Semear, que presta assessoria legal aos povos indígenas e remanescentes quilombolas. “Foi importante para entender quais as principais demandas dos povos indígenas. Dentro do movimento, a demarcação de terras ainda é a maior demanda”, observa.

A UFRGS instituiu o Processo Seletivo Específico para Ingresso de Estudantes Indígenas (PSEI) em 2007. Antes de Viviane, o único indígena a se formar no Direito foi Marcos Kaingang, que atualmente dirige o Departamento de Mediação e Conciliação de Conflitos Fundiários Indígenas no Ministério dos Povos Indígenas.

Apesar da presença indígena, ainda minoritária, a universidade é um espaço que continua refletindo a cultura ocidental. “No direito, na medicina e cursos considerados mais elitistas, ainda se mantêm uma certa bolha conservadora que implementa as formas de educação ocidental. Quando entrei na faculdade, foi bastante complicado compreender essa nova forma de ensino”, relata Viviane.

É o mesmo que pontuou Isael da Silva Pinheiro, o primeiro doutor guarani da UFRGS, que foi diplomado pela Faculdade de Educação em janeiro deste ano. Ao Sul21, ele disse que os intelectuais indígenas têm uma epistemologia própria, mas chegam à academia e são inseridos numa filosofia de mundo ocidental. “A universidade brasileira prioriza a questão do conhecimento científico. É preciso dialogar com outros intelectuais, respeitando seus modos próprios de produzir conhecimento”, destacou.

“Temos bastante dificuldade em permanecer na Universidade porque viemos de um território que tem os métodos de ensino bastante diferentes. Há um choque cultural bastante drástico”, explica Viviane. “São poucos espaços que tentam entender quais são as formas de organização dos povos indígenas. Não tentam entender minimamente como funciona pra tentar implementar uma forma de ensino que vá fazer com que os alunos indígenas permaneçam na faculdade e concluam seu curso”. Viviane observa, por exemplo, que sua graduação não teve nenhuma disciplina específica sobre direitos dos povos indígenas. “São coisas que acabam sendo deixadas de lado ou sendo conquistadas a partir de muita luta”, diz.


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