Educação
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13 de setembro de 2023
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11:03

Suicídio na UFRGS alerta para necessidade de acolhimento e promoção da saúde mental

Por
Duda Romagna
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Há cerca de um mês, um estudante de engenharia tirou a própria vida nas dependências de um dos prédios da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Foto: Luiza Castro/Sul21
Há cerca de um mês, um estudante de engenharia tirou a própria vida nas dependências de um dos prédios da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Foto: Luiza Castro/Sul21

Caso você ou alguém que conhece esteja precisando de ajuda, o Centro de Valorização da Vida (CVV) realiza apoio emocional e prevenção do suicídio, atendendo voluntária e gratuitamente todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo, por telefone (188), e-mail e chat, 24 horas, todos os dias. 

Em 2020, no Brasil, os casos de depressão e ansiedade subiram 25%, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). De acordo com o relatório Suicide Worldwide, publicado em 2021 com dados de 2019, o suicídio foi a quarta causa de morte entre jovens de 15 a 29 anos, somente depois de acidentes de trânsito, tuberculose e violência interpessoal. 

Uma pesquisa da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), de 2019, entrevistou 400 mil estudantes de 63 instituições. Entre os participantes, 23,7% deles relataram que problemas emocionais ou psicológicos levam a dificuldades nos estudos. Mais de 80% dos estudantes apresentavam sintomas como ansiedade, insônia, sentimento de solidão, desamparo e desânimo. Aproximadamente 8% relataram ter ideação suicida. 

Há cerca de um mês, um estudante do curso de Engenharia tirou a própria vida nas dependências de um dos prédios da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É o terceiro caso de suicídio no mesmo local registrado desde 2019, quando outros dois aconteceram. 

Nas redes sociais, estudantes expressaram solidariedade para com a vítima, mas também cobraram ações de prevenção e acolhimento, além da mudança em padrões de conduta de professores e de dinâmicas das aulas e cursos. 

“A sanidade mental é posta à prova diariamente, com estruturas que te perseguem se tu fracassa”, comentou um estudante. “Eu estou assustada, mesmo sabendo que não é a primeira vez e nem vai ser a última”, disse uma colega. “Quando a universidade vai parar pra enfrentar esse problema? Não é um caso isolado. Como tornar a universidade um ambiente acolhedor?”, questionou outro aluno.

 

“Tua sanidade mental é posta à prova diariamente”, diz estudante. Foto: Luiza Castro/Sul21

O Sul21 conversou com alguns estudantes que demonstraram interesse em falar sobre o cotidiano das aulas, suas experiências e preocupações em relação às condutas de professores e da instituição. Os alunos e alunas pertencem aos cursos de Engenharia e todos preferem não ser identificados. 

Entre eles, é unânime o desgaste por conta da carga horária do curso, que muitas vezes não permite que trabalhem ou mantenham uma rotina de sono adequada. “Na pandemia, por exemplo, um professor largava a prova no sistema de madrugada, às 2h, 3h, 4h da manhã. Então, tu estava acordado estudando para a prova e não sabia se ficava acordado para ver a prova, ou se dormia e acordava depois. Eu colocava meu despertador para as 5h da manhã, pra ter tempo de terminar a prova, que era muito longa, antes do professor tirar a prova do sistema”, relata o primeiro estudante.

A segunda aluna tem uma experiência semelhante, também impactada pela pandemia. Durante o Ensino Remoto Emergencial (ERE), método de ensino a distância adotado pela UFRGS, ela começou a estagiar em uma empresa. “Um professor disponibilizava conteúdos e ficava online durante três dias da semana para tirar dúvidas. Porém ele fazia uma chamada, que no ERE não era permitida, então os alunos eram obrigados a ‘comparecer’”, conta. 

“Um dia eu estava no ônibus indo para o trabalho e fui falar para o professor o motivo de eu não conseguir entrar nessas chamadas, mas que eu assistia assim que chegava em casa. Expliquei que tive de trabalhar porque durante a pandemia a renda caiu, mas ele respondeu apenas isso: ‘Você deveria ter pensado melhor na hora que escolheu trabalhar e fazer essa cadeira’.” 

 

Estudantes de engenharia relatam episódios que retratam o que chamam de “cultura do sofrimento”. Foto: Luiza Castro/Sul21

Outra estudante lembra de um caso que chegou até os meios de comunicação. Ainda durante o ensino remoto, uma aula gravada da disciplina de Circuitos Elétricos I mostrou um professor da Engenharia gritando com um estudante. O aluno teria feito uma pergunta e o professor respondeu, com tom de voz elevado: “Essa pergunta é horrorosa. Mostra que tu não entende porcaria nenhuma do circuito. Eu expliquei na aula passada, cheguei aos berros a dizer aqui que a fonte é independente, cacete. […]  De onde tu tirou isso? Quem foi o imbecil que colocou isso na tua cabeça?”

Em entrevista à GZH, o docente disse não se arrepender do que foi dito, pois “foi feito para o bem”. A Ouvidoria da UFRGS recebeu a denúncia do caso e a Escola de Engenharia, em nota, disse que o caso estava em desacordo com a “cultura de respeito” defendida pela instituição. 

“Esse caso só vazou porque pôde ser registrado devido às aulas remotas durante a pandemia, meus colegas falavam das humilhações constantes. A questão problemática é que quando eu vi isso, eu não achei nada muito incomum. É, ou pelo menos era, algo cotidiano na minha primeira graduação”, diz uma estudante, que já é formada em Engenharia pela universidade.

Outro estudante ouvido cita que, na realidade, o que é vivido dentro das salas de aula seria uma “cultura de sofrimento”, não de respeito. “Dá pra dizer que existe uma cultura de sofrimento. São engenheiros com doutorado, mas não são professores. Eles não têm uma sensibilidade de como se dá o aprendizado, e é na base do sofrimento. Eles acham que é realmente na força bruta que o aluno vai aprender, virando a noite estudando, tomando ritalina, procurando quem vende ritalina sem receita”, conta. 

“Eu já me senti inútil, incapaz, dá uma raiva, uma impotência. É isso, a pessoa está desequilibrada mentalmente, está num sofrimento muito grande. Isso é algo que vem sendo jogado para baixo do tapete pela UFRGS”, finaliza o estudante.

Após o caso recente de suicídio, a UFRGS divulgou a cartilha “Cuidado e empatia em momentos difíceis: orientações sobre a abordagem do suicídio nas unidades acadêmicas da UFRGS”, elaborada por psicólogas da Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis (PRAE) e pelo professor do Instituto de Psicologia, Serviço Social, Saúde e Comunicação Humana (IPSSCH) Moisés Romanini. 

“É fundamental falar sobre o suicídio […] é por meio da fala que podemos o prevenir, seja informando às pessoas em risco como procurar ajuda, seja oferecendo recursos àqueles em seu entorno”, diz o documento. A cartilha reúne algumas sugestões básicas de conduta para favorecer o cuidado nas relações estabelecidas na universidade.

A UFRGS também publicou uma nota de pesar, que posteriormente foi excluída a pedido da família da vítima, o que é previsto pelo Decreto Federal 7.724/2012, em seu artigo 55. Publicações de notas e homenagens somente podem ter sua divulgação autorizada por consentimento expresso de familiares, como cônjuge ou companheiro(a), descendentes ou ascendentes. 

Os realizadores do manual explicam que, em instituições de ensino e locais de trabalho, quando há um caso de suicídio, o primeiro movimento precisa ser o de identificar as pessoas mais próximas, chamadas de “sobreviventes”, mas que podem ter efeitos psicológicos importantes em decorrência do caso. “O objetivo deve ser o de acolher, promover a saúde mental e bem-estar das pessoas enlutadas, minimizando os possíveis agravamentos para o processo de luto, e reduzir risco de novos suicídios”, pontuam.

 

Especialistas recomendam que universidade promova o acolhimento de estudantes. Foto: Luiza Castro/Sul21

Generalizações e estereótipos podem agravar ou estimular pessoas com ideação suicida, além de perpetuar mitos que tornam o assunto um tabu. Alguns exemplos de ideias equivocadas sobre o suicídio são que apenas pessoas que aparentam estar deprimidas e isoladas idealizam e que a tentativa de suicídio é uma forma de chamar a atenção.

A psiquiatra Berenice Rheinheimer lembra que a ideação suicida é multifatorial, ou seja, a conduta de um professor não é, sozinha, determinante para que alguém pense em suicídio. Numa instituição de ensino, a prevenção ao suicídio começa no acolhimento e na atenção às necessidades e aos sinais de problemas psicológicos, como a depressão e a ansiedade. 

“O que acontece é que há uma padronização da maneira que o professor, ou a instituição, trata o aluno, independente se aquele aluno tem alguma dificuldade ou está com alguma questão de saúde mental. Muitas vezes há momentos em que é necessário alguma adaptação”, explica. “As escolas e universidades podem estar dispostas, por exemplo, a fazer uma negociação, um tempo maior de prova, uma avaliação adaptada.” 

Ainda, a médica pontua que as instituições de ensino devem estar atentas para identificar sinais de vulnerabilidade e oferecer ferramentas necessárias para uma abordagem de acolhimento. Essas práticas podem agir na prevenção ao suicídio, visto que, de acordo com dados do Ministério da Saúde, cerca de 96% dos casos de suicídio no Brasil estão associados a diagnósticos de transtornos mentais, como depressão, transtorno bipolar e abuso de substâncias.

Partiu dos estudantes a iniciativa de criar um projeto para repensar a saúde mental no contexto da universidade. Gabriel Aguiar, acadêmico do curso de Engenharia Civil e integrante da gestão do Centro dos Estudantes Universitários de Engenharia (CEUE), conta que, em 2019, foi pensado o projeto “Meu i0”, uma brincadeira com os conceitos do ordenamento (cálculo que define um ranking de alunos em cada etapa dos cursos e pode favorecer a matrícula em disciplinas). 

Inicialmente, foram feitas palestras de prevenção ao suicídio no mês de setembro como parte da campanha Setembro Amarelo. Após a pandemia, o projeto se juntou à PRAE para a realização de rodas de conversa sobre saúde mental. Gabriel explica que, principalmente após os últimos acontecimentos, os encontros se mostraram muito necessários. 

“Tínhamos marcado uma reunião para ensinar técnicas para lidar com a ansiedade, mas voltamos para o formato convencional de roda de conversa, junto à equipe do projeto ‘Medusa’, do Instituto de Psicologia, uma psicóloga da PRAE e uma assistente social. Neste último caso, muitas pessoas que estavam na aula no momento que aconteceu ficaram com traumas, a roda de conversa foi importante para conversarmos sobre e ouvir os alunos pra que eles não mantivessem isso somente pra eles”, relata.

A iniciativa PRAEscutar, de acolhimento coletivo a estudantes dos cursos de Engenharia, se define como um espaço de escuta, onde os participantes poderão falar dos sentimentos e desafios que vivenciam no percurso acadêmico, trocar ideias e compartilhar experiências. Os encontros acontecem nas terças-feiras, às 18h, na sede do CEUE, no Campus Centro. 

A PRAE disponibiliza atendimento pedagógico, social e de acolhimento em saúde mental a estudantes de graduação vinculados ao programa de benefícios. Também oferece suporte e orientação técnica aos servidores para o manejo de demandas de saúde mental dos estudantes. Para solicitar atendimento, é necessário enviar um e-mail para [email protected].

O Programa de Extensão Movimento Educação e Saúde Mental (Medusa) oferece grupos de acolhimento presenciais e online a estudantes de graduação e pós-graduação. Pode contribuir na orientação técnica às unidades acadêmicas em relação à saúde mental discente.

A Divisão de Promoção da Saúde (DPS/DAS/Sugesp) oferece atendimento psicossocial individual a servidores docentes e técnico-administrativos e realiza atendimentos e intervenções com equipes. O contato pode ser feito a partir do e-mail [email protected] ou pelos telefones (51) 3308-3917 e (51) 3308-3363.

O Núcleo Pedagógico do Campus Litoral Norte disponibiliza orientação pedagógica e acolhimento psicológico individual ou em grupo a estudantes dos cursos ofertados na Unidade, bem como orientações a servidores docentes e técnicos, com atendimentos que ocorrem de forma presencial ou online.


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