Educação
|
15 de abril de 2023
|
08:33

70% das universidades federais no Brasil não têm qualquer medida de combate ao assédio

Por
Fernanda Nascimento
[email protected]
Campanha de 2016 na Universidade Federal de Juiz de Fora. Foto: Caique Cahon/UFJF
Campanha de 2016 na Universidade Federal de Juiz de Fora. Foto: Caique Cahon/UFJF

O debate sobre assédio moral e sexual nas universidades foi a tônica da semana nas redes sociais, após vir a público o caso envolvendo o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos. Não são poucos os relatos de situações de perseguição, humilhação, coerção e abuso registrados no ambiente acadêmico ou a partir de relações que se estabeleceram nas instituições de ensino superior. Apesar de ser um problema latente e reconhecido socialmente, a prevenção e o enfrentamento à questão pelas universidades ainda é recente e caminha a passos lentos. 

Na última terça-feira (11), ganhou o noticiário internacional um artigo publicado no livro “Má conduta sexual na academia — para uma ética de cuidado na universidade” (em livre tradução do inglês), em que três ex-alunas do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra relatam casos de assédio envolvendo Boaventura, nome mais conhecido da universidade no mundo, e Bruno Sena Martins, professor diretamente ligado ao sociólogo. Ambos não são identificados no artigo — onde são feitas referências apenas ao “Professor Estrela” e ao “Aprendiz” –, mas já concederam entrevistas confirmando se tratarem das pessoas mencionadas e negando as acusações.

Boaventura disse estar sendo vítima de “cancelamento” e prometeu uma queixa-crime contra as autoras. No entanto, outros casos vieram à tona após o artigo. Uma ativista mapuche da Argentina relatou ter sido vítima de assédio no ano passado. Já nesta sexta, a Agência Pública revelou que a deputada estadual mineira Bella Gonçalves é a pessoa não identificada no artigo das três outras estudantes, que abandonou a pesquisa em Portugal e retornou ao país após ser assediada pelo professor. Na sexta, Boaventura anunciou o afastamento das atividades no CES enquanto as denúncias são apuradas.

Uma pesquisa desenvolvida em 2020 pela doutora em Administração Bianca Spode Beltrame com 44 instituições federais de ensino superior brasileiras demonstrou que 70% das instituições não possuem qualquer medida de combate ao assédio. E, a maioria, também não desenvolve programas de prevenção aos casos. 

A professora e pesquisadora da Universidade de Brasília (UnB) Tânia Mara Campos de Almeida investiga relações de gênero, violência, trabalho e saúde e afirma que o assédio impacta não apenas as pessoas envolvidas, mas é um empecilho para o desenvolvimento social. 

“O assédio é muito negativo para a vida das pessoas diretamente assediadas, porque muitas pessoas interrompem a vida acadêmica, mudam de instituição e precisam realizar tratamento médico. E, é prejudicial em termos acadêmicos, porque uma instituição que não garante acolhimento à pluralidade e não estabelece normas de convivência perde a diversidade de produção de conhecimento.”

As publicações sobre situações de assédio moral e sexual nas instituições de ensino em diversos países têm demonstrado semelhanças entre os episódios. Na coletânea “Panorama da violência contra mulheres nas universidades brasileiras e latino-americanas”, publicada em 2022, autores de diferentes países apontam as mulheres, pessoas negras e LGBTs como principais alvos do assédio. As situações incluem episódios que vão desde comentários constrangedores de cunho sexual, desqualificação intelectual e perseguições, até estupros, feminicídios e suicídios em razão de assédio. 

Em comum, os estudos apontam que as vítimas têm medo de denunciar por questões estruturais, como o medo de não ser acolhida e sofrer outras violências – como o descrédito na denúncia; e, em específico, a repercussão do caso na própria reputação e na carreira, na medida em que muitos episódios são perpetuados por pessoas em situação de prestígio e poder institucional. Como afirma a professora e coordenadora Laboratório Interdisciplinar de Estudos de Gênero (LIEG) da Unesp, Lidia Possas, o problema estrutural das situações são as relações de gênero: “O corpo feminino tem uma conotação que é de todos”. 

Na UFRGS, uma pesquisa sobre percepção de assédio moral e sexual relativo a gênero, desenvolvida por um equipe multidisciplinar da instituição, demonstrou que o percentual de assédio moral é elevado. “Em torno dos 40% das/os docentes e discentes e chegando a mais da metade das/os técnicas/os-administrativas/os que responderam a pesquisa”.

As situações de violência e assédio moral e sexual na universidade tem aspectos diferentes conforme o nível de ensino. Tânia Mara Campos aponta que, na graduação, as principais vítimas são as estudantes calouras: “São estudantes jovens que estão entrando na universidade. Às vezes, as pessoas moram em outras cidades e chegam nas universidades sem conhecer ninguém, sem rede de apoio, e acabam ficando mais vulneráveis. E isso, muitas vezes, não se dá apenas na relação com os professores. Acontece, principalmente na relação com os alunos veteranos”. 

A professora Lidia Possas lembra que as denúncias envolvendo situações de violência em trotes foram um dos primeiros movimentos realizados no combate às situações de assédio. “Os trotes eram terríveis e as meninas eram colocadas em uma situação bastante lamentável pelos veteranos.”

Na Unesp, assim como em outras universidades brasileiras, os trotes foram proibidos. Em 2014, inclusive, a Assembleia Legislativa de São Paulo instaurou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar casos de violação de Direitos Humanos em universidades paulistas. Atualmente, tramita no Senado uma proposta que proíbe o trote universitário que possa colocar em risco físico ou psicológico estudantes universitários.

O medo de sofrer represálias pela denúncia é um dos principais apontamentos das pesquisas que estudam as situações de assédio na pós-graduação. Diferentemente da graduação, as situações de assédio se concentram nas relações entre professores e estudantes, especialmente entre orientadores e orientandas.

Para Bruna Rocha, estudante do programa de pós-graduação em Desenvolvimento Rural e representante da Associação de Pós-Graduandos da UFRGS, combater o assédio nesses espaços é difícil por envolver a conivência de outros docentes com as situações. “A pós-graduação é um ambiente tóxico. Ocorre muito assédio moral. A gente tem uma casta dentro da academia, cada programa é um feudo, em que acontece coisas de assédio moral e sexual em que o elo mais fraco são os alunos. E quando os alunos falam alguma coisa, isso acaba ficando dentro do programa”, explica.

E se as situações são complicadas no contexto nacional, a professora Tânia afirma que os deslocamentos para outras regiões do Norte Global torna as pesquisadoras latino-americanas ainda mais vulneráveis: “A migração de pessoas de países que foram colônias mostra que essas pesquisadoras, em decorrência do machismo, do racismo e da xenofobia, sejam as mais afetadas e assediadas. São mulheres vistas como oriundas de continentes que na divisão acadêmica do conhecimento teriam menos prestígio”.

Os programas de prevenção e ações de combate ao assédio nas universidades começaram a surgir nos últimos anos e ainda são bastante incipientes. Na UFRGS, o Conselho Universitário aprovou em novembro de 2022 a resolução de enfrentamento ao assédio na universidade.

O documento foi elaborado a partir da atuação do Núcleo Ampare, que reúne professores, técnicos administrativos e estudantes envolvidos em pesquisas e ações relacionadas ao tema. 

Uma das reclamações frequentes sobre os casos de assédio é a ausência de punição aos envolvidos. Para as coordenadoras do Ampare, a professora de Biblioteconomia Jeniffer Cuty e a psicóloga Mariana Valls, ainda há um desconhecimento sobre as instâncias de denúncia existentes nas instituições: “Essa ideia de impunidade é uma ideia equivocada. Existem instâncias de apuração, como a Comissão de Ética e a Corregedoria. Existem instâncias de punição, com tipos de sanção”, afirma Jeniffer.

De acordo com as professoras, por mais que as comunicações anônimas sejam importantes, as denúncias precisam ser formalizadas. “Muitas vezes as pessoas que sofreram assédio não conseguem escrever a denúncia. Elas ficam desorganizadas. Então, as pessoas que estão próximas devem ajudar a elaborar a redação e a procurar os canais de apoio. Quem denuncia consegue acompanhar todas as etapas do processo”, diz Mariana. 


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora