Economia
|
3 de setembro de 2021
|
18:43

Entenda o risco de apagão e por que a conta de luz poderá ter novos aumentos

Por
Luís Gomes
[email protected]
Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil
Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Na última terça-feira (31), a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) anunciou a criação de uma nova bandeira tarifária na conta de luz, chamada de “bandeira da escassez hídrica”. As bandeiras de energia são acionadas quando a capacidade de geração de energia do sistema elétrico brasileiro se aproxima do limite e se torna necessário acionar alternativas mais caras, como aumentar a participação das usinas termoelétricas no sistema, mais caras.

Até então, estava acionada a bandeira vermelha patamar 2, que adicionava uma taxa de R$ 9,49 às contas de energia a cada 100 kWh consumidos. A bandeira da escassez hídrica é de R$ 14,20, cerca de 50% mais cara. Segundo a Aneel, em média, as contas de energia dos brasileiros ficarão 6,78% mais caras em razão do aumento.

Na noite de terça, o ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, fez um pronunciamento afirmando que o aumento é consequência da seca que afeta o País, segundo ele, a pior já registrada. “O período de chuvas na região Sul foi pior que o esperado. Como consequência, os níveis dos reservatórios de nossas usinas hidrelétricas das regiões Sudeste e Centro-Oeste sofreram redução maior do que a prevista”, disse.

O ministro afirmou que, diante da falta de água nos reservatórios das hidrelétricas, o Brasil teve que aumentar de forma significativa a geração de energia nas usinas termelétricas e a importação de energia de países vizinhos. “Como todos os recursos mais baratos já estavam sendo utilizados, esta eletricidade adicional proveniente de geração termelétrica e de importação de energia custará mais caro”, disse.

A disparada no preço da energia, contudo, pode não ser a única consequência da crise energética. Especialistas vêm alertando há meses que o Brasil pode voltar a viver um cenário de racionamentos forçados e até de apagões, como ocorreu na última grande crise nacional do setor, em 2001. Na terça-feira, em entrevista à CNN, Bento Albuquerque disse que o “risco de racionamento hoje é zero”, mas ressaltou que a crise hídrica é grave e fez um apelo para que os consumidores poupem energia.

O Sul21 conversou ao longo desta semana com especialistas no setor energético com o intuito de tentar compreender o que está na origem da crise, quais serão as consequências para o consumidor, o que ainda pode ser feito para evitar um cenário mais grave e como se pode evitar uma nova crise no futuro.

Professor no Departamento de Engenharia Elétrica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Maicon Jaderson Silveira Ramos explica que a matriz elétrica brasileira é composta, predominante, por usinas hidrelétricas (que utiliza a força dos rios) e termelétricas (gera energia a partir da queima de combustíveis). Há ainda usinas eólicas (vento) e fotovoltaica (sol), mas estas seriam importantes para agregar ao sistema, não para garantir a geração em escala necessária para abastecer o país.

Ramos diz que não é possível dizer se a crise energética é resultado de planejamento mal feito, mas ressalta, por outro lado, que a possibilidade de chover menos do que o esperado era uma realidade conhecida do setor. O professor diz que, em 2015, o Brasil tinha passado por um problema de falta de chuvas semelhante. “A diferença é que lá a gente estava numa situação de retração econômica, as pessoas estavam consumindo menos”, diz. “A gente tem uma série histórica que nos mostra que sempre chove no período tal nas regiões Sudeste e Centro-Oeste, por exemplo, que concentram grande parte da geração hidráulica do Brasil. Só que essa série histórica tem mostrado que a chuva não vem como deveria vir. Então, é esperado que a gente vai ter problemas. Dá para dizer então que quem fez o planejamento se respaldou demais na série histórica”.

Ramos pontua que, na última década, o Brasil tem construído novas hidrelétricas para aumentar a capacidade de geração de energia, mas não tem investido, por outro lado, em construção de barragens para armazenar água em reservatórios — o que ele salienta que é algo que poderia ser discutido do ponto de vista ambiental. “Talvez o problema tenha sido a gente ter se sustentado muito em função desses reservatórios que estão associados à série histórica que mostra que vai chover. Aí não chove, o que a gente faz?”, questiona.

Já Gilberto Cervinski, mestre em Energia pela Universidade Federal do ABC (UFABC) e membro da Coordenação Nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), avalia que o risco de racionamento não é explicado pela falta de chuva. Ele defende que a crise do setor foi produzida por uma política energética equivocada do País.

“Se tu olhar os dados do sistema elétrico nacional, que estão disponíveis no site do ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico), tu vai ver que a quantidade de água nos reservatórios tem só 29,5%. Na região sudeste, é 21%. Ou seja, é baixíssima a quantidade de água nos reservatórios. Isso significa que tem pouca água. E, ao mesmo tempo, esse esvaziamento não foi produzido agora, ele foi produzido no passado, inclusive no ano passado”, diz.

Cervinski destaca que é verdade, sim, que o Brasil enfrenta um ano de seca, mas pontua que ele sucede um 2020 que foi o quinto ano mais chuvoso das últimas décadas. Ao mesmo tempo, em razão da pandemia, foi um ano de queda no consumo de energia. No entanto, os reservatórios das usinas hidrelétricas já teriam iniciado 2021 com baixas quantidades de água armazenadas. Segundo Cervinski, isso ocorreu por uma política que permite às empresas que controlam as usinas maximizarem os lucros no curto prazo, uma vez que “água parada” nos reservatórios significaria perdas financeiras.

Além disso, já era previsto que 2021 seria um ano de seca, mas o sistema energético do País não estaria preparado. “O governo sabia que viria a seca. Então, o que aconteceu? Eles operaram de uma forma errada o funcionamento das usinas. Esvaziaram a água que tinha armazenada nos reservatórios e criaram um ambiente de escassez, que faz as tarifas de energia elétrica aumentarem muito. E, ao aumentar muito as tarifas, isso aumenta também o lucro das próprias empresas, porque elas são donas de termelétricas que o governo se obriga a acionar e são caríssimas. Então, essa situação não é momentânea, ela foi criada no último período, mas o governo joga que o grande problema dessa situação é culpa da falta de chuva e do povo que não sabe consumir educadamente a energia. Nós temos denunciado que não é culpa nem do clima, nem do povo, para esse caos do setor elétrico do País”, diz.

Na mesma linha, o diretor do Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Energético (Ilumina) Roberto D’Araújo avalia que o Brasil deveria estar preparado para a possibilidade de um ano de seca e que faltaram investimentos em novas hidrelétricas e aumentou muito a dependência de termelétricas, que têm um custo de produção de energia muito mais alto.

“Eu fiz um exame nos planos que a empresa de planejamento energético fez para 2021 há 10 anos, em 2011, que apontava a necessidade de muito mais hidrelétricas. Faltaram hidrelétricas e, no lugar, entraram termelétricas. Mais ou menos 30% de termelétricas entraram por fora do planejamento”, diz. “As termelétricas que entraram são muito caras, metade delas são acima de R$ 400 por mW/h. Então, o que o operador faz? É como se tu estivesse com a tua caixa d’água com 30%, aí a empresa de água não te entrega, vem uma pessoa e diz que vende um litro de água por R$ 50. O que vocês faz, você compra? Não, você vai continuar usando a caixa d’água até a hora que vai precisar usar o litro de água por R$ 50. Então, você tendo termelétricas caras, na verdade, você esvazia os reservatórios até decidir usá-las. Como o Brasil contratou térmicas muito caras, por isso que estamos nessa situação”, diz.

Gilberto Cervinski destaca que o aumenta nas bandeiras tarifárias irá perdurar, pelo menos, pelos próximos oito meses, uma vez que o anúncio do governo é de que a bandeira de escassez hídrica será usada até abril do ano que vem. Um custo para o consumidor que pode chegar a R$ 27,6 bilhões. “Se tu pegar o consumo nacional de energia elétrica e multiplicar pela taxa que eles estão aplicando de R$ 14,20, tu vai ver que isso vai dar um impacto de R$ 3,45 bilhões por mês nas contas dos consumidores brasileiros. Vezes oito meses, é R$ 27,6 bilhões o custo do tarifaço na conta de luz só via o mecanismo das bandeiras. Esse é o impacto que vai causar no bolso dos consumidores brasileiros.”

Contudo, ele avalia que novos aumentos deverão ocorrer nos próximos meses. Um exemplo disso é a possibilidade da energia ficar mais cara em determinados períodos do dia, o que poderá elevar a tarifa das 17h às 21h, horário de pico de uso, quando as pessoas retornam para casa. “Tem também a questão da entrada do dinheiro da Conta-Covid”, diz, referindo-se ao programa criado pelo governo federal em 2020 para minimizar os efeitos da pandemia no setor.

Com a Conta-Covid, os reajustes de energia que deveriam ocorrer em 2020, em razão da alta do dólar — que afeta o preço da energia gerada em Itaipu –, foram diluídos ao longo de 60 meses em vez de 12 meses, como ocorreriam em circunstâncias normais.

O professor Maicon Ramos pontua que a Aneel havia proposto uma nova bandeira tarifária na casa dos R$ 20, e que o valor de R$ 14,20 passou por uma decisão política do governo. “Ainda que o governo tente dar uma segurada no preço agora, todo o custo da energia é sempre repassado ao consumidor, esse é o modelo regulatório brasileiro. Se não vai pagar agora, em algum momento via pagar, daqui a seis meses, um ano, mas vai pagar”, pontua.

Ele destaca também que uma das alternativas que restam ao governo para garantir o fornecimento de energia é a importação de energia, como o próprio ministro admitiu na terça, que chega ao Brasil a um preço maior do que a gerada aqui. “O Brasil tem um sistema interligado de norte a sul, que permite o escoamento de energia entre as regiões. Tem interligação com outros países, o que permite importar energia ao preço determinado em contratos. O operador vai tentar despachar usinas que estejam disponíveis para despachar, ao preço que tiver que pagar, e esse custo vai direto ao consumidor. Esse é o modelo brasileiro. As distribuidoras vão pagar o preço que tiver que pagar e os clientes vão pagar o preço dessa energia, porque o custo dessa energia é 100% repassado ao cliente. No curto prazo, o que os clientes vão sentir é direto no preço”, diz.

Cervinski também não descarta a possibilidade do Brasil enfrentar apagões e racionamentos. Ele diz que o risco existe porque as hidrelétricas trabalham com níveis de eficiência que exigem o armazenamento de uma certa quantidade de água e que, com os reservatórios esvaziados, a produção de energia perde capacidade de geração e perde produtividade. “Só que não é uma hidrelétrica que foi afundada e está com os reservatórios baixos, é a maioria. Tem hidrelétricas com apenas 10% de água, ou seja, estão operando essas usinas a ‘fio de d’água’. O risco é começar a explodir apagões, porque tem hidrelétricas que nunca funcionaram com níveis tão baixos e as máquinas podem colapsar. Ou podem produzir menos e a carga do sistema ser maior. E o problema vai se agravar em setembro e outubro, porque é o período seco no sudeste e nas regiões norte e nordeste. Então, esse período seco, ao mesmo tempo que volta o calor no país, significa que aumenta o consumo, e com os reservatórios abaixo, pode culminar de colapsar as máquinas e o sistema de produção de energia, gerando apagões”.

Roberto D’Araújo também não descarta o risco de apagões. Ele explica que, quando os reservatórios das usinas vão baixando de nível, o peso da água sobre as turbinas também vai baixando. Como as turbinas das usinas geram mais potência quanto mais alto o nível da água, a queda nos reservatórios significa uma redução na potência energética gerada pela hidrelétrica. “Se passar de um certo nível, a turbina suga a água, em vez da água pressionar a turbina. Isso pode estragar a turbina. Então, o que nós podemos ter ali na frente é que algumas usinas terão que desligar algumas turbinas e isso vai diminuir muito a potência das usinas hidrelétricas e pode provocar apagão. Em momento de máximo consumo, se não houver redução das indústrias, você pode desligar algumas turbinas e aí você vai ter um apagão de uma, duas horas”, diz. “Agora, o apagão é só uma porta de entrada para o racionamento. A gente pode chegar num ponto que tenha que desligar uma usina inteira, o que vai ser complicado”, alerta.

D’Araújo diz que o aumento da bandeira tarifária pode estimular a redução do consumo e o governo também pode estimular as indústrias a reduzirem o consumo no horário de pico, o que ajudaria a minimizar os riscos de apagões temporários. Ele lembra que, em 2001, o então ministro da Casa Civil, Pedro Parente, assumiu o comando do enfrentamento da crise e “obrigou todo mundo” a reduzir o consumo de energia, pessoas físicas e jurídicas, estipulando multas para quem não cumprisse metas de redução de consumo. Contudo, ele ressalta que as indústrias irão buscar ressarcimento para isso, o que também deve refletir no bolso do consumidor. “Isso provavelmente vai cair naquela Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), que cai no bolso de todo mundo. Eu não sei como as indústrias vão aceitar isso”.

Maicon Ramos diz que, do ponto de vista sistêmico, o operador pode, por exemplo, flexibilizar alguns limites de transmissão de energia entre regiões. “Os equipamentos tem uma capacidade de segurança e se tenta, obviamente, trabalhar com maior segurança possível para que você tenha o sistema operando. Mas a gente sabe que é possível flexibilizar algumas coisas, claro, com certo cuidado, com controle, e dentro de um determinado limite”, diz.

Outra medida que poderia ser tomada é postergar a manutenção de maquinário, como geradores. Contudo, isso poderia trazer um risco adicional. “É claro que isso tudo vai aumentando o nível de estresse do sistema. Cada vez que tu vai reduzindo o nível de segurança, tem um ponto que ele pode colapsar”, diz.

A respeito da redução de consumo, ele diz que tem pesquisado os efeitos das bandeiras tarifária sobre o consumo e que, até o momento, não era perceptível. No entanto, ressalta que o aumento atual pode impactar no bolso do consumidor ao ponto de que ele será forçado a reduzir o consumo. Da mesma forma, diz que o estímulo do governo para reduzir o consumo em órgãos federais também pode ter algum impacto.

Já Cervinski diz que, no curto prazo, é muito difícil evitar os cenários mais negativos porque o “caos no setor” já foi instalado. Ele afirma que é favorável à promoção da economia de energia, mas defende que não pode ser uma economia em que os grandes consumidores recebem bônus financeiros pela redução de consumo, enquanto o restante da população é penalizada com aumento de tarifa.

O professor Maicon Ramos argumenta que um planejamento de médio e longo prazo para evitar crises no setor energético deveria levar em conta ao menos duas vertentes. Uma delas é a ciência energética, isto é, a pesquisa de tecnologias que ajudam o sistema a ser mais eficiente, o que passa desde os equipamentos de geração até os aparelhos que o consumidor tem em casa. “Uma pessoa, de forma geral, vai comprar o ar-condicionado mais barato, mas, depois, a gente fica com problemas de falta de energia porque não se fomenta o uso de equipamentos com rendimento melhor”, diz. Embutido na conta de luz, já há um valor que deveria ser destinado pelas empresas para ações de ciência energética, mas o governo permitiu, por meio da Medida Provisória 998 que os recursos que deveriam ser destinados para a área fossem usados com outros fins.

A segunda vertente seria repensar a matriz energética do país, tanto do ponto de vista da capacidade de transmissão de potência entre as regiões do país, como quais as fontes de energia que devem alimentar o sistema. Nesse sentido, pontua que, hoje, é um contrassenso falar em aumentar em investimentos em termelétricas, pois se trata de uma energia cara e com grande impacto ambiental. Mas há outras alternativas que poderiam receber mais investimentos e dar sustentação ao sistema, como o gás natural.

Para Cervinski, a melhor forma de evitar novas crises é não privatizar as empresas do setor. “A primeira coisa é estancar a privatização da Eletrobras, da Cemig, da CEEE e da Copel. Essas quatro empresas têm mais de 80 hidrelétricas juntas, isso é muito importante. Segunda questão é retomar o controle sobre todo o sistema. E terceiro é fazer um planejamento para não repetir o que eles fizeram, que foi uma operação para gerar escassez de água e explodir com as tarifas. Então, tu tem que planejar a operação do sistema de uma forma mais alongada e não nessa lógica de tirar o que tu conseguir a curto prazo, em que se tu tem água armazenada ‘é dinheiro parado, então vamos acionar tudo de uma vez e vamos para as térmicas’”, diz.

Roberto D’Araújo também acredita que a privatização do setor tem contribuído para a crise energética atual. “Você imagina o seguinte: se você fosse um capitalista que quer investir no Brasil e vê que o governo está anunciando a venda da Eletrobras, o que você faria? Construiria uma usina nova ou esperaria para comprar uma usina pronta, uma empresa que tem muitas usinas prontas e faturando? Lá em 2001, o que aconteceu também foi isso. Também culparam São Pedro, mas é mentira. A realidade é que, quando o Fernando Henrique anunciou a venda da Eletrobras, o setor privado se retirou da expansão do sistema”, diz. “A primeira coisa que deveríamos fazer é interromper esse processo da Eletrobras, porque, quem nos salva do desinteresse do setor privado, é a Eletrobras”.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora