Cultura
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21 de julho de 2023
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19:29

Dissertação resgata 20 contos ‘perdidos’ de Júlia Lopes de Almeida, idealizadora excluída da ABL

Por
Luís Gomes
[email protected]
Foto: Reprodução/ Fundação Biblioteca Nacional
Foto: Reprodução/ Fundação Biblioteca Nacional

O que o tempo impõe atualmente à mulher é o desprendimento dos preconceitos,
a luta, sempre dolorosa, pela existência, o assalto às culminâncias
em que os homens dominam e de onde a repelem.
Mas, seja qual for a guerra que lhe façam, o feminismo vencerá,
porque não nasceu da vaidade, mas da necessidade que obriga a triunfar.
Júlia Lopes de Almeida, Para a morte!, em Livro das Donas e Donzelas

Júlia Lopes de Almeida (1862-1934) foi a única escritora entre os idealizadores da Academia Brasileira de Letras (ABL). Entre romances, contos, peças de teatro e novelas, produziu uma extensa obras marcada pela defesa da abolição da escravatura e por temas que, hoje, são considerados “à frente de seu tempo”, como a educação formal para mulheres, o divórcio e direitos civis. Contudo, parte de sua obras permaneceu “esquecida” em periódicos do século 19, nunca tendo sido publicada em livros.

Em sua dissertação apresentada este ano junto ao Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o pesquisador e mestre Guilherme Barp fez um resgate desta obra. Em pesquisa realizada no acerto da Hemeroteca Nacional, acervo digital da Biblioteca Nacional, identificou 20 contos publicados em jornais e revistas entre 1885 e 1902, momento inicial de sua carreira, que nunca foram republicados em livros.

“Eu sabia que tinha muitas coisas que ela publicou que continuavam nos periódicos e que ninguém nunca tinha resgatado. Os romances dela foram reeditados em livros depois que apareciam nos periódicos, revistas e jornais do século 19, mas os contos ela acabava deixando vários apenas na imprensa, não colocava nos livros de contos dela. Esses que ficaram de fora eu acabei resgatando agora”.

Júlia Almeida constava na lista dos idealizadores da ABL, que seriam os primeiros “imortais”. Contudo, seu nome foi excluído pela decisão de manter a Academia exclusivamente masculina, uma marca dos padrões sociais da época, mas que contribuiu para o memoricídio, apagamento da literatura de autoria feminina.

“Eu achei importante fazer esse resgate justamente por se tratar de uma escritora que não tem o devido reconhecimento. Agora, está começando a ter um pouco mais de reconhecimento, estão começando a surgir novas edições dos livros dela, está começando a aparecer como leitura obrigatória em alguns vestibulares, inclusive no vestibular da UFRGS. Então, são alguns fatores que me motivaram também a entrar nesse movimento e contribuir fazendo a minha parte com um resgate também”, diz.

Barp conta que já conhecida a autora desde a graduação, por incentivo de sua orientadora, Cinara Antunes Vieira, e, ao começar sua pesquisa em 2021, ainda durante a pandemia, o interesse pelo trabalho de resgate histórico também passou pelas circunstâncias.

Para ele, a obra de Júlia Almeida é marcada por temas atuais. “Ela dialoga, por exemplo, com questões feministas. Eu resgatei um conto que ela trata das relações abusivas na família. As crônicas dela, saindo um pouco da minha dissertação, reivindicam os direitos da mulher para o trabalho e para a educação. Então, temas que nós estamos discutindo hoje, mas ela já discutia lá no século 19”.

O pesquisador submeteu para um edital interno do Instituto de Letras a solicitação de publicação, via Editora da UFRGS, dos contos resgatados, já disponibilizados em sua dissertação. Ele diz que espera o retorno da solicitação para o segundo semestre. Paralelamente, conta que já recebeu o convite de outras editoras de Porto Alegre interessadas em publicar o material.

 

Publicação do periódico ‘A Semana’, do Rio de Janeiro, em 28 de Fevereiro de 1885. No canto superior esquerdo, o conto ‘As Lagrimas’, de Julia Lopes de Almeida | Foto: Reprodução/A Semana.
Guilherme Barb é o autor da pesquisa que identificou 20 contos de Júlia Lopes de Almeida | Foto: Arquivo Pessoal

Barp avalia que ainda há muito material de Júlia Lopes de Almeida para ser resgatado, uma vez que sua pesquisa foi focada nos contos. Contudo, pontua que, para além de Júlia, que foi uma das maiores autoras de sua época, existem muitas outras escritoras e escritores cuja obras, ou parte dela, permanece “perdida” em periódicos do século 19.

“Eu acho que ainda tem muito material a ser resgatado, não só da Júlia Lopes de Almeida, mas de outros autores. Eu acredito que, para além da autora, de outras escritoras brasileiras do século 19. Nós também temos várias escritoras aqui do Rio Grande do Sul que os textos delas acabaram ficando só na imprensa, nunca foram publicados em livro. E também não só as escritoras, mas escritores homens que não tinham o trabalho devidamente valorizado na época, tem também vários textos que ficaram só na imprensa”, diz.

Ele pontua que, à época, a publicação de livros era um espaço de prestígio, reservado para um grupo menor de escritores. A imprensa, por sua vez, era um espaço mais acessível. “Vários escritores acabaram publicando só na imprensa. Hoje em dia, nós podemos resgatar esse material por meio dos acervos, sendo digitais ou não, e devolver esses trabalhos do século 19 aos leitores”, afirma.

Barp pontua que o seu trabalho e outras pesquisa de resgate podem contribuir com mudanças de percepção sobre como era a literatura do século 19. “A gente pode ter uma outra visão da literatura agora com esses ‘novos’ nomes sendo trazidos à tona, inclusive de mulheres. Na escola, nós não aprendemos que existiam várias escritoras que, já no século 19, publicavam seus textos e eram lidas. Agora, então, a gente recupera essas escritoras e demonstra que elas existiram, que elas publicaram no século 19”, afirma.


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