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27 de dezembro de 2019
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10:39

‘Tudo que eu fiz na vida eu deixei lá’: venezuelanos recomeçam com restaurante em Porto Alegre

Venezuelanos que migraram para o RS contam sua história. Foto: Luiza Castro/Sul21
Venezuelanos que migraram para o RS contam sua história. Foto: Luiza Castro/Sul21

Débora Fogliatto

Claire Guevara Scussel mudou-se da Venezuela para o Brasil há dez anos. Quatro anos depois, veio a sua mãe. Há 9 meses, chegaram seu irmão, Gonzalo, com a esposa e o filho mais novo. A família Guevara exemplifica a história recente da Venezuela: enquanto Claire viu os primeiros sinais da crise que iam se intensificar nos últimos anos e migrou cedo, seu irmão tentou ficar no país o máximo que pode. Gonzalo ainda tem um filho, de 30 anos, vivendo na cidade de Caracas, mas o pai lamenta que ele “trabalhe de graça”, mesmo com um bom emprego, devido à instabilidade da inflação no país.

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Casada com um gaúcho, Claire veio com o marido para Canoas ao suspeitar que a situação lá ia “ficar difícil”. A venezuelana, que já fala português fluente embora mantenha o sotaque, conta que, mesmo na época, já havia alguns sinais da crise que estava por vir. “Já tinha cortes de luz, comida que não se encontrava no supermercado. Não tanto quanto agora, mas dava para ver que ia ficar pior”, relata.

Quando chegou ao Brasil, Claire passou por desafios que são comuns a migrantes de diversas origens: não sabia a língua e precisou se adaptar à solidão e ao clima. “Eu nem sabia o que significava ‘obrigada’ quando cheguei. Meu marido me dizia que eu precisava sair para trabalhar e eu nem queria, porque não sabia falar português”, conta. O primeiro emprego que conseguiu no Rio Grande do Sul foi na área em que trabalhava na Venezuela, lidando com propriedade privada e registro de patentes, mesmo sem falar português. “Na entrevista, eles falaram português e eu espanhol, e eles me contrataram. Isso foi um grande desafio, conseguir entender a língua e também o jeito do pessoal daqui”, conta.

Claire mudou-se para o RS com o marido, que é gaúcho. Fotos pro especial de migração. Foto: Luiza Castro/Sul21

Já mais acostumada com o português, abriu com o marido – que é formado em Letras com ênfase em espanhol e tradutor juramentado – uma empresa de traduções, composta também por um amigo tradutor de inglês. O marido de Claire segue trabalhando como tradutor, enquanto ela agora se dedica principalmente ao restaurante aberto há poucos meses: o Santa Arepa, voltado à comida tradicional venezuelana, com um toque de brasilidade.

A ideia de iniciar o empreendimento veio justamente com a chegada do irmão e da cunhada de Claire ao Brasil, pensando também em propiciar-lhes uma fonte de renda. Antes de virem para cá, o casal havia tentado a vida na Espanha ao sair da Venezuela, mas não se adaptaram ao país europeu. Foi lá que Gonzalo trabalhou por alguns meses como gerente em um restaurante, experiência que trouxe para o Santa Arepa. Formado em administração, o venezuelano conta que em seu país nunca havia trabalhado no ramo de restaurantes.

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Inicialmente, os irmãos abriram o negócio em Canoas, em um lugar pequeno, que funcionou como “teste”, nas palavras de Claire. Após alguns meses, com o incentivo do marido dela, decidiram arriscar mudar o empreendimento para Porto Alegre, alugando um espaço no Nova Olaria, na Cidade Baixa. Por enquanto, tem dado certo: os negócios vão bem e a família já emprega funcionários brasileiros e venezuelanos. Em uma quarta-feira de dezembro, às 18h já havia clientes no local, e cerca de uma hora depois as mesas da parte externa já estavam quase todas ocupadas.

Segundo os sócios, os principais clientes são brasileiros, seguidos por colombianos e depois venezuelanos. Quem já viajou para Venezuela e Colômbia gosta de ter a possibilidade de comer novamente as arepas, enquanto quem nunca comeu vai para provar a iguaria: pãezinhos de farinha de milho recheados.

Originalmente, os recheios tradicionais são de carne, frango e queijo. No Santa Arepa, pode-se encontrar opções vegetarianas e veganas, assim como outros sabores menos tradicionais, como coração de galinha e calabresa. “Decidimos adaptar para a demanda e o gosto das pessoas daqui”, resume Claire. Ainda, o local serve bebidas típicas, como o papelón com limón – feita de rapadura, limão e hortelã – e a chicha – espécie de batida de arroz com leite condensado.

No Brasil, as tradicionais arepas ganharam características um pouco diferentes. Foto: Luiza Castro/Sul21

Mesmo tendo migrado com o marido gaúcho, Claire relata dificuldades que são comuns aos migrantes, mesmo com diferentes motivações, origens e destinos. Além da língua e da adaptação ao clima, ela também cita a solidão enfrentada quando se mudou para Canoas, sem amigos e família. “Mesmo estando com meu marido, ele tinha que sair para trabalhar de Canoas para a Zona Sul, ficava fora de casa das 6h às 21h. Era uma solidão assim, não ter família, não ter amigos”, relata.

Com o nascimento do primeiro filho, Francesco, o sentimento se intensificou, segundo ela. “Como mãe também isso é horrível, um dos grandes desafios. Meu primeiro filho eu amamentei até ele ter um ano, a minha filha até os dois porque ela demandava isso. Então eu levava ela para o trabalho, não tinha ninguém com quem deixar. É isso, o não ter ninguém além do teu marido, ele também trabalha, isso é um grande desafio”, complementa. Apesar de tanto Claire quando Gonzalo relatarem que os brasileiros têm sido muito acolhedores com sua família, ela também conta já ter sido ofendida por uma cliente por não saber o significado de uma palavra.

Seus filhos, mesmo nascidos no Brasil, têm como primeira língua o espanhol, pois é nela que os pais conversam em casa. Assim, ao entrar na escola, Francesco também teve que enfrentar os desafios de ser alfabetizado em português, além das diferenças culturais. “Ele tem também a questão cultural, porque até o lanche que ele leva para a escola são arepas, é diferente. E os colegas perguntam o que é, por que trouxe isso. Ele é diferente, mesmo não querendo. Porque a casa dele é completamente diferente das casas dos colegas”, aponta Claire.

Mesmo garantindo estar muito feliz com a receptividade dos brasileiros e demonstrar gratidão pela acolhida, Gonzalo também pondera sobre as dificuldades de ser migrante. “No momento o meu plano é ficar aqui, mas a gente sempre quer ficar no nosso país. Tudo que eu fiz na vida eu deixei lá, aqui estou começando tudo de novo. Deixei meu carro, minha casa, minha moto. Todos os dias tenho saudade do meu país”, lamenta.

Estabelecimento fica na Cidade Baixa. Foto: Luiza Castro/Sul21

Uma das dificuldades mais marcantes que os irmãos citam estar afetando seu país de origem é a falta de acesso a medicamentos. A mãe de Claire e Gonzalo necessita de medicação de uso contínuo e ele conta ter chegado a ir a 23 farmácias em Caracas em busca do remédio, sem sucesso. “Aqui, esse remédio encontramos em qualquer farmácia”, compara. Foi por isso que, há quatro anos, quando a mãe veio ajudar a filha na segunda gravidez, ela acabou também migrando para o Brasil.

“Eu disse para a minha mãe: ‘se tu voltar para lá, tu vai morrer, porque não existe teu remédio’. Então ela veio, a princípio, me ajudar com a minha filha, nos primeiros dias quando ela nasceu, mas não voltou mais”, relata Claire.

Os irmãos lamentam ainda as condições precárias nas quais algumas pessoas saem do país, chegando a caminhar por quilômetros para chegar às fronteiras. Claire relata que conheceu aqui um venezuelano trabalhando em um supermercado, o qual contou sua história para ela. “Eu ouvi ele falando com sotaque venezuelano e fui cumprimentá-lo. Ele me contou que caminhou 40 km para chegar na fronteira, para atravessar o rio, ficou caminhando uns 3 dias para conseguir chegar aqui”, relata.

Gonzalo também fala da situação com tristeza. De sua família, há primos na Colômbia e no Chile. “Quando começou, saía quem tinha recursos, para procurar melhor qualidade de vida. Agora, sai todo mundo que consegue sair, de qualquer jeito”, afirma.

Gonzalo lembra relatos tristes que ouviu de outros venezuelanos. Fotos pro especial de migração. Foto: Luiza Castro/Sul21

Embora desde o ano passado se fale muito dos venezuelanos que chegaram ao Rio Grande do Sul como refugiados, com amparo das Nações Unidas e do governo, os irmãos e sua família não vieram como refugiados, mas sim como migrantes, e regularizaram sua situação na Polícia Federal.

No ano passado, cidades gaúchas como Esteio, Canoas e Porto Alegre receberam refugiados que entraram no país por Roraima e chegaram ao Rio Grande do Sul pelo programa de interiorização. Até junho de 2019, a ONU contabiliza que já havia mais de 168 mil venezuelanos morando como refugiados no Brasil, e em setembro, um ano após o início da interiorização, já eram 1,7 mil venezuelanos no Estado. Em junho, a ACNUR (Agência da ONU para refugiados) divulgou que já eram 4 milhões de venezuelanos refugiados em todo o mundo. Esses números não levam em conta os que, como a família Guevara, migraram sem pedir refúgio.

Dentre os pontos positivos da migração, Claire e Gonzalo mencionam a solidariedade dos brasileiros com o povo venezuelano: ela relata que, quando refugiados de seu país chegaram a Canoas, inicialmente ela e o marido doaram roupas e alimentos. Em seguida, foram informados que o número de doações já era grande o suficiente para as famílias que foram morar na cidade. Já Gonzalo conta ter percebido ele próprio o acolhimento dos gaúchos. “O brasileiro faz a gente se sentir em casa. O que eu sinto é gratidão. E te digo, venezuelanos e brasileiros, se falassem a mesma língua, seriam como irmãos”, afirma.

Foto: Luiza Castro/Sul21
Foto: Luiza Castro/Sul21
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