Notícias
|
19 de setembro de 2012
|
17:30

Acessibilidade: Porto Alegre é mesmo uma cidade para todos?

Por
Sul 21
[email protected]
Juliana Carvalho, publicitária e cadeirante
Foto: Arquivo Pessoal

Juliana Carvalho *

Embora a capital gaúcha tenha o título de cidade mais acessível do Brasil, ainda falta muito para Porto Alegre ser uma cidade para todos. E quando falo de todos incluam aí pessoas cegas, surdas, cadeirantes, idosas, gestantes, obesas, pessoas sem deficiência que quebraram o pé e estão usando temporariamente muletas, pessoas que gostam de usar salto alto e passam trabalho para andar nas calçadas destroçadas de nossa cidade. Sim, nossas calçadas estão destruídas. E aí, o estado não satisfeito com o pagamento de IPTU, IPVA, ICMS, IPI e ISAQR (Imposto sobre o Ar Que Respiramos) ainda quer que o contribuinte cuide da própria calçada. Meu amigo, com o que a maioria ganha já está difícil garantir o leite das crianças, como você quer que o povo invista em calçada? E o próprio estado não mantém as calçadas que são de sua responsabilidade. Tenta rodar de cadeira pela Praça da Matriz e pela quadra dos três poderes. É um horror.

Abordo primeiro a parte da acessibilidade física, para pessoas que usam cadeira de rodas. Falta rampas de acesso em inúmeras ruas. Muitas que têm rampas estão mal conservadas ou foram mal projetadas. Falta acesso aos prédios públicos e também de uso público. Nas habitações também há problemas: muitos amigos não podem me receber em suas casas, pois não são oferecidos meios adequados de acesso.

O transporte coletivo, um dos melhores do Brasil, ainda não tem toda frota acessível. Se você acha que espera muito tempo nas paradas de ônibus, multiplique por dois esse tempo de espera. Pelo menos, o cadeirante aguarda sentado, alguém mais otimista diria. Porém, quando o ônibus finalmente vem, não é raro encontrar os elevadores de acesso emperrados ou então dar de cara com a falta de preparo de motoristas e cobradores para operar os equipamentos. E se o elevador e o motorista estiverem ok, você ainda assim vai se deparar com a falta de sensibilidade e a impaciência das pessoas que estão no ônibus e fazem cara feia porque o cadeirante leva mais tempo para embarcar.

Ok, você não é adepto do transporte coletivo. Assim como a Angélica, só vai de táxi. Tente atacar um táxi na rua sendo cadeirante… Aproveite que está sentado e espere. Não saberia contar a quantidade de situações constrangedoras que já passei com taxistas. Claro que tem gente muito legal e solidária, mas uma meia dúzia acaba com a imagem da categoria. Já me disseram que a cadeira ia estragar o banco do carro e se recusaram a me levar. Alô? É uma concessão pública, não tem que escolher cliente.

Mas, quando o assunto é acesso aos serviços, sem dúvida, as pessoas surdas são as mais excluídas. Você já pensou que, se uma pessoa surda precisa ir ao médico, ela tem que levar junto um intérprete? E se for uma emergência e ela estiver sozinha? Como vai dizer para o médico quais são os sintomas? E quando precisa ir a uma delegacia? Surdo também é assaltado, mas não consegue acesso ao serviço de segurança pública. E também não tem acesso à informação. O Closed Caption não serve pra muita coisa uma vez que a maioria das pessoas surdas não domina o português. Só para conhecimento, a LIBRAS é a primeira língua dos surdos e o português, a segunda. Em uma breve comparação, para nós ouvintes, o português é a primeira língua e o inglês a segunda. Quantos dos que me leem agora dominam o inglês? Imagine agora se você tivesse que acompanhar toda programação da TV apenas com legendas em inglês que passam super-rápido. Aposto que mais da metade da informação seria perdida. É o que acontece com os surdos, todos os dias.

E pra quem é cego, Porto Alegre é acessível? Pelo que meus amigos com deficiência visual relatam a resposta é um NÃO em letras garrafais. Todos já deram de cara em algum orelhão. Situação que poderia ser evitada se ouvisse piso podotátil de alerta. Para pegar um ônibus, a pessoa cega tem que contar com a boa vontade de quem enxerga e perguntar qual linha está vindo. Atravessar a rua também requer auxílio, já que uma ínfima parte dos semáforos tem sinal sonoro. E que tal escolher o que vai jantar ou almoçar com autonomia? A lei que obriga estabelecimentos como bares e restaurantes a disporem de cardápio em Braille completa dois anos em setembro. Até hoje não fui a um único local que oferecesse o cardápio acessível para os cegos.

E é assim com inúmeras outras leis que deixariam Porto Alegre um local digno de se viver, mas não saem do papel. Eu sempre falo: não precisamos de mais leis, precisamos de fiscalização. De incentivo para que os empresários adaptem seus estabelecimentos, de vergonha na cara de quem administra verba pública. A esta altura, quem lê este texto deve estar pensando “mas essa cadeirante louca está transformando Porto Alegre em um caos, não é tão ruim assim a capital gaúcha…”. Ah é? Então, lanço aqui um desafio: que o caro leitor encare um único dia como cadeirante. 24h sem levantar da cadeira e ter um dia de rotina normal.

Quero que você tente ir ao banco — e mofe esperando acharem a chave que liga o elevador de acesso, e mofe mais um pouco esperando acharem a chave que abre a porta lateral do banco. Quero que você tente estacionar seu carro adaptado em uma das 34 vagas especiais da área azul (isso mesmo, apenas 34 vagas para cadeirantes) e dê o flagrante nas pessoas que estacionam ali sem precisar. Quero que você tente comprar uma roupa em alguma loja e perceba que não pode provar o que quer comprar porque a cadeira não entra no provador. Quero que você tente rodar pelo centro de Porto Alegre e tente visitar os prédios tombados pelo patrimônio histórico que não têm acesso porque não se pode modificar sua fachada. Castelos de 1600 na Europa são acessíveis e os nossos aqui têm fachadas intocáveis. Peraí, então é patrimônio pra quem? Só pra quem pode andar?

O desafio está lançado. E depois de experimentar a cidade sob a ótica de cadeirante você venha me dizer se a cidade é mesmo para todos.

* Juliana Carvalho é publicitária

.oOo.

O Sul21 está publicando desde o dia 5 de setembro uma série de artigos sob o tema “A Porto Alegre do Século 21”. Neles, personalidades de notório conhecimento aprofundam a discussão sobre temas centrais como habitação, mobilidade urbana, saneamento, educação, cultura, cidades digitais, saúde, acessibilidade e meio ambiente, oferecendo subsídios para uma reflexão não-alienada sobre as necessidades da capital gaúcha.

Artigos anteriores:
– Política Habitacional em Porto Alegre: cinco eixos estratégicos
– Urbanismo e meio ambiente: dez pontos para um projeto de cidade
– Saúde pública: Compromisso com a Vida
– Cidade Digital e Cidadania digital
– Mobilidade urbana: há caminhos para o trânsito de Porto Alegre
– A cultura dá sentido à vida: uma reflexão sobre Porto Alegre


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora