Nubia Silveira (texto) e Flavia Boni Licht (consultora)
Em junho de 2012, o programa Monumenta concluirá o restauro da Praça da Alfândega, no Centro Histórico de Porto Alegre. As obras, que já se estendem por dois anos e nas quais serão investidos R$ 3 milhões, buscam dar à Praça a imagem que ela tinha nas primeiras décadas do século XX. No seu entorno, podem ser admirados belos edifícios, projetados pelo arquiteto alemão Theo Wiederspahn, como o Santander Cultural, o Museu de Arte do Rio Grande do Sul e o Memorial do Rio Grande do Sul, que apenas o leitor identificado como Felipe X reconheceu — ainda que com alguma dúvida: “Antigo prédio dos correios? :)” – nas fotos com detalhes, publicadas pelo Sul21, na semana passada.
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Até o início da 57ª Feira do Livro, em 28 de outubro, será entregue a área próxima à Rua da Praia, que se encontra protegida por tapumes. A arquiteta Dóris Saraiva de Oliveira, uma das responsáveis pela fiscalização dos trabalhos de restauro, representando o Programa Monumenta, ressalta que o restauro da Praça integra um conjunto do qual fazem parte também o Cais do Porto e a Avenida Sepúlveda, sítios tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). O projeto de restauração foi definido com base no desenho que a Praça teve entre os anos 1920 e 1940.
A última grande intervenção sofrida pela Alfândega ocorreu em 1970, quando foram retiradas as linhas de bonde do Centro, criado o calçadão e unificadas as Praças Senador Florêncio e Rio Branco, esta uma espécie de jardim que embelezava as frentes dos antigos prédios da Delegacia Fiscal (hoje, MARGS) e dos Correios e Telégrafos (hoje, Memorial do Rio Grande do Sul). O paisagismo das praças também deverá se parecer com o original. A arquiteta Renata Rizzotto e o agrônomo Sérgio Tomasini, da Secretaria Municipal do Meio Ambiente (SMAM), são os responsáveis pelo projeto paisagístico. Renata reconhece que, devido às alterações ocorridas nas plantas existentes na Alfândega e à vegetação de grande porte, não é possível que se faça, agora, a marcação dos canteiros, como eram. Apesar disso, serão – diz Renata – “evidenciados os caminhos eliminados em 70 da Praça, retomando os antigos e o eixo marcado pelas palmeiras”.
Canteiros em estilo francês
Renata e Sérgio pesquisaram para saber que vegetação usar nas áreas sombreadas da Praça, pois a ideia é de que ela esteja permanentemente florida e colorida. Em frente ao MARGS e ao Memorial os canteiros voltarão a ter a bordadura característica dos canteiros franceses, como os do Palácio de Versalhes, repetidos por aqui nos primeiros 40 anos do século passado. Ao redor do canteiro, será plantada uma vegetação mais alta, de cerca de 80 centímetros, conhecida como buxinho. No interior, com altura inferior, serão cultivadas, entre outras, begônias, clívias, agapantos (no verão), beijo-pintado (inverno), canas-índica, muito utilizadas nos anos 50 e 60, e azaleias. Renata ressalta que a azaleia não era muito usadas no início do século XX, mas a adaptação foi necessária. Onde não bate sol, os paisagistas usarão a grama preta e, para dar mais claridade à Praça, vão recorrer ao ofiopogon.
Além do colorido dos canteiros remodelados, a Praça voltará a ter o seu mobiliário urbano, como os bancos de ferro, e a fonte A Samaritana, que em 1935 foi deslocada da Praça Montevidéu, para a Alfândega. Ela cedeu lugar à Fonte Talavera, depois de permanecer por 10 anos em frente ao Paço Municipal. Dóris Oliveira explica que, há alguns anos, A Samaritana foi bastante danificada por ataques de vândalos. Recentemente, foi restaurada. A original ficará em exposição na Prefeitura e, para a Praça, foi feita uma réplica. Para a arquiteta, é importante ressaltar que foi removido o asfalto existente na Alfândega. O piso volta a ser todo em pedra portuguesa. Dóris também lembra que foram recuperadas todas as calçadas e os canteiros centrais da Avenida Sepúlveda voltaram a ter duas palmeiras cada um. E, para facilitar o trânsito de pessoas com deficiência, a praça foi toda nivelada e ganhou rebaixos nos meio-fios.
A arquiteta Flavia Boni Licht, que pesquisa as difíceis relações entre patrimônio e acessibilidade, diz que “dá ânimo ver a Praça da Alfândega ‘renascer das cinzas’’. Para ela, “o envolvimento de profissionais reconhecidamente competentes e sensíveis na restauração desse marcante patrimônio da nossa cidade, garante que não teremos ali intervenções equivocadas, arbitrárias ou nocivas. Certamente poderemos, muito em breve, desfrutar de um espaço público, que acolherá a todos nós, diversos como somos; um espaço onde as crianças poderão brincar com liberdade, onde os idosos poderão se reunir com segurança, onde as pessoas com deficiência poderão se deslocar com autonomia, provando que o respeito à diversidade humana (expresso, por exemplo, pela presença de um piso tátil, que possibilita o caminhar autônomo de um cego) só qualifica um bem cultural”. Flavia faz ainda uma ressalva: “independente da legislação vigente no Brasil há vários anos e da recente aprovação do Plano Diretor de Acessibilidade de Porto Alegre, como bem lembra, nas suas memórias, o arquiteto João Filgueiras Lima, ‘certas coisas não estão escritas no manual; fazem parte da consciência crítica de cada um’”.
A pergunta é: depois de finalizado o restauro, como será feita a conservação da área? Tanto Dóris quanto Renata afirmam que a prefeitura estuda a hipótese de que a praça seja adotada por uma ou mais empresas. Renata alerta que a conservação dos jardins é cara e necessita de um trabalho contínuo. Para a preservação do restauro, afirma a arquiteta da SMAM, “tentamos usar plantas mais rústicas. A parte técnica nós fizemos”.
Um prédio com quatro funções
Autor do livro Theo Wiederspahn, arquiteto, Günter Weimer esclarece a dúvida sobre quem realmente projetou o prédio do Banco Nacional do Comércio, onde está instalado o Santander Cultural. “Foi Theo Wiederspahn”, diz o arquiteto gaúcho. Tombado pelo governo estadual, por meio do IPHAE, em 1992, mesmo ano em que o governo federal tombou a Praça da Alfândega, o prédio é o mais novo dos três projetados por Wiederspahn, localizados na praça, próximos um do outro.
Günter, autor também de outros livros, como Arquitetura Popular da Imigração Alemã e Origem e Evolução das Cidades Riograndenses, conta que o arquiteto alemão venceu o concurso promovido, entre 1923 e 1924, para a construção de um prédio, onde funcionariam, além do Banco Nacional do Comércio, o Clube do Comércio, um restaurante e um hotel, todos com entradas independentes. Günter diz que a construção teve início em 1928, um ano antes da quebra da Bolsa de Nova York, que causaria a grande crise financeira internacional. “Não sei por que – diz o arquiteto-escritor – decidiram fazer fundações diretas, em que escavam o solo até chegar em terreno firme”. As escavações atingiram cerca de sete metros, sem encontrar terreno firme e Theo Wiederspahn entrou em falência. A obra, então, ficou parada até 1933, devido à falência do arquiteto, à crise financeira mundial, à Revolução de 30 e à Revolução Constitucionalista de 32.
Durante todo este tempo, o buraco permaneceu aberto. Günter diz que não sabe quais as razões que levaram o prédio, afinal, a ser destinado apenas ao funcionamento do Banco, sendo fechadas as entradas laterais, que atenderiam ao Clube e ao hotel. O projeto foi então reformulado internamente pelo arquiteto polonês Stefan Sopczak. “Externamente, ficou parecido com o projeto original de Wiederspahn”, assegura Günter.
A linguagem eclética de Wiederspahn
Günter alerta que, no início do século XX, quando foram construídos os prédios da Delegacia Fiscal e dos Correios e Telégrafos a arquitetura não mais obedecia a estilos. Os projetos eram ecléticos. “Com o ecletismo deixa de existir estilo. Há uma linguagem eclética”, alerta. E esta é a linguagem utilizada pelo arquiteto alemão nos três prédios. Há algumas variações entre eles. O MARGS e o Santander se caracterizam pelo uso de colunas clássicas. Para o projeto do Memorial, Wiederspahn se apoiou mais no barroco e na Arte Nova.
A Delegacia Fiscal começou a ser construída em 1913, pela firma do engenheiro Rudolf Ahrons. Tem quase cinco mil metros quadrados, repletos de mármores, vitrais e ornamentos, também desenhados pelo projetista alemão. Günter relata que Wiederspahn desenhava os ornamentos em tamanho natural: “Colocava o papel de rolo na parede, subia numa escada que corria de um lado a outro e desenhava com carvão. Depois, mandava para a oficina de um escultor”. As esculturas que embelezam o MARGS e o Memorial foram executadas nas oficinas de João Vicente Friederichs e de Alfred Adlof.
Em 1981, três anos depois de o Margs ter se instalado no prédio da Delegacia Fiscal, ele foi declarado patrimônio histórico e cultural, pelo governo federal. Em 1985, pelo estadual. O prédio foi restaurado em 1997. E, antes mesmo de as obras estarem concluídas, foi uma das sedes da I Bienal do Mercosul, e passou a chamar-se Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malagoli, uma homenagem ao artista que organizou o Museu. Novas obras foram feitas no prédio, nos anos de 2006 e 2007, a fim de solucionar problemas surgido nas coberturas e calhas.
Ornamentos simbólicos
Construído entre 1910 e 1913, o prédio do Memorial do Rio Grande do Sul, antigo Correios e Telégrafos, exibe um conjunto de esculturas. O arquiteto Günter Weimer lembra-se da mulher com uma carta, rodeada por crianças. “É uma alegoria à comunicação”, diz ele. As esculturas renascentistas baseavam-se na mitologia greco-romana. Assim, se queriam simbolizar o comércio, reproduziam Mercúrio, o Deus do Comércio. Mas, diz Günter, com a chegada da industrialização não havia deuses para representar a comunicação e a navegação fluvial, por exemplo. Por isso, foram criadas alegorias, inspiradas na mitologia greco-romana.
No Memorial, tombado pelo governo federal, em 1980, há outro grupo de esculturas: um atlante, que carrega o globo, uma mulher e um adolescente que também tentam levantar o globo. A mulher representaria a Europa, de onde saíram os imigrantes, e o adolescente, a América, para onde vieram. O prédio, com 3,6 mil metros quadrados, foi restaurado em 1998. Günter considera que a restauração destes patrimônios foi bem feita. Só não concorda com o ar-condicionado instalado no Santander Cultural. “Há outras formas de instalar ar-condicionado, sem aqueles tubos desproporcionais”, afirma.
Endereços:
Memorial do Rio Grande do Sul
Rua Sete de Setembro, 1020 – Praça da Alfândega – Centro Histórico – Porto Alegre – RS
Visitação: de terça a sábado, das 10h às 18h. Domingos e feriados, das 13h às 17h
Informações: 51-3224.7210 – [email protected]
Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malagoli
Praça da Alfândega, s/n° – Centro Histórico – Porto Alegre – RS
Visitação: de terças a domingos, das 10 às 19 horas. Entrada franca
Fone (51) 3227-2311 – Fax (51) 3221-2646 [email protected]
Santander Cultural
Rua Sete de Setembro, 1028 – Praça da Alfândega esquina General Câmara – Centro Histórico, Porto Alegre / RS
Visitação: de terça a sexta, das 10h às 19h. Sábado, domingo e feriado, das 11h às 19h.
Visita Guiada: De terça a sexta, das 10h às 16h.
Fone: (51) 3287-5500
De onde são?
Você conhece bem os prédios tombados como patrimônio histórico no Centro de Porto Alegre? Teste a sua memória. Olhe bem estas fotos e diga de onde elas são.