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23 de fevereiro de 2024
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20:00

“Não houve racismo”: polícias civil e militar encerram inquérito sobre abordagem ao entregador Everton

Por
Bettina Gehm
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Para a polícia, não houve agressão física ou verbal por parte dos soldados. Foto: Gabriel Centeno/SSP
Para a polícia, não houve agressão física ou verbal por parte dos soldados. Foto: Gabriel Centeno/SSP

O crime de racismo foi descartado no caso do entregador negro que levou um golpe de canivete, desferido por um idoso, e foi detido pela Brigada Militar no último sábado (17). O inquérito também não tratou o caso como tentativa de homicídio, já que tanto o motoboy Everton Goandete da Silva quanto o morador Sérgio Camargo Kupstaitis, 71 anos, tiveram ferimentos superficiais. Para a polícia, não houve agressão física ou verbal por parte dos soldados. As informações foram apresentadas na tarde desta sexta-feira (23), em coletiva de imprensa na Secretaria de Segurança Pública (SSP).

A polícia exibiu imagens de câmera de segurança que mostram Everton arremessando três pedras na direção de Sérgio, após ser agredido com um canivete. Não há registros da agressão sofrida por Everton, mas Sérgio confirmou ter golpeado o entregador.

Tanto Everton quanto Sérgio foram indiciados criminalmente por lesão corporal leve. Everton também foi indiciado por desobediência. A Polícia Civil apurou laudos do Instituto Geral de Perícias, imagens gravadas por celular e câmera de segurança, além de ouvir 27 pessoas: os quatro policiais deslocados para a ocorrência, Everton e mais 22 testemunhas. “Nós não apuramos o crime de racismo porque não foi aventada essa possibilidade em nenhum momento. Nem pelo Everton e nem pelas outras partes que foram ouvidas”, afirmou Heraldo Guerreiro, subchefe da Polícia Civil.

Imagens gravadas no dia 17 mostram o momento em que um policial encosta Everton na parede sob protestos de populares que os cercam. Os outros brigadianos se juntam ao primeiro e Sérgio se afasta. Enquanto isso, quatro brigadianos cercam Everton e o algemam.

Sérgio foi conduzido à delegacia no banco traseiro da viatura e Everton foi transportado no porta-malas, o que a polícia aponta como transgressão disciplinar por parte dos brigadianos. “A condução dos dois [Everton e Sérgio] deveria ter sido da mesma forma”, afirma Vladimir Luís Silva da Rosa, corregedor geral da Brigada Militar. O inquérito aponta que os policiais não perceberam uma segunda viatura, que chegou depois da primeira, e por isso colocaram Everton no porta-malas. “Se tivesse duas desde o primeiro momento, o procedimento seria igual. A policial não observou que havia essa segunda viatura para condução, e gerou toda essa má percepção”, diz o corregedor geral da Brigada Militar.

Uma das policiais que atuou na ocorrência também enfrenta um procedimento de transgressão disciplinar por não ter acompanhado Sérgio quando ele entrou novamente no prédio. Ela apenas mandou que ele fosse vestir uma camiseta e pegar seus documentos, o que ele fez, e depois foi algemado.

Os brigadianos não foram afastados da polícia. “Para dar atenção psicológica aos policiais, dois soldados ficam trabalhando no setor administrativo até que o fato seja resolvido”, explica Vladimir da Rosa. Com o fim da sindicância, os policiais têm o direito de se pronunciar e depois é decidida a punição disciplinar. Se for do entendimento dos seus comandos, os PMs podem voltar imediatamente a ações de campo.

Sandro Caron, secretário de Segurança Pública, classificou o ocorrido como uma “situação isolada e pontual”. No início desta semana, o Sul21 compilou os casos mais recentes de violência policial contra a população negra no Rio Grande do Sul.

Imagens de câmera de segurança mostram que, antes da chegada da Brigada Militar, Sérgio tenta voltar para o prédio onde mora após ter agredido Everton. O entregador arremessa três pedras no idoso para impedir que ele entre no prédio.

Sérgio já não tinha mais o canivete em mãos no momento da chegada dos policiais. Um dos soldados pergunta o que Everton fazia ali, e o entregador responde: trabalhando. Sérgio interrompe e fala “não trabalha nada”, ao que Everton se exalta e diz “não começa, feio, agora pega a faca”. O corregedor Vladimir da Rosa afirma que o entregador desobedeceu às ordens para se acalmar e à voz de abordagem para levar as mãos à cabeça, por isso foi detido.

Segundo a polícia, Everton foi a vítima inicial na ocorrência, mas passou a ser o agressor quando arremessou pedras em Sérgio. “Quando alguém age em legítima defesa, tem que reprimir a agressão iminente apenas naquele momento”, afirma o corregedor. O inquérito aponta que Everton foi resistente à abordagem da polícia, enquanto Sérgio foi solícito e “conversava sem animosidade”.

O caso segue agora para o Ministério Público. Caso o judiciário entenda que houve um crime mais grave, o inquérito policial retorna à delegacia para novas diligências

Conforme a polícia, Sérgio acionou o 190 três vezes antes do último sábado. Da primeira vez, dia 8 de outubro do ano passado, a ligação foi motivada por indivíduos “perturbando a sua tranquilidade” e “assando carne em via pública”. Em novembro, Sérgio reclamou para a polícia que seis pessoas estariam fazendo “bagunça em via pública”. No dia 24 de janeiro deste ano, o idoso ligou para o 190 informando que indivíduos estariam tentando derrubar uma banca de revista na rua. Segundo a polícia, nesta última ocorrência, Everton estava no local. Por isso, haveria um “desentendimento prévio” entre Sérgio e o entregador.

O Comandante-Geral da Brigada Militar, Cláudio dos Santos Feoli, afirmou que a instituição está há mais de um ano em processo de contratação da empresa que irá fornecer câmeras corporais para o uniforme do efetivo. “A licitação iniciada não teve empresas adequadas ao termo de referência que foi estabelecido. Foi feito um novo pregão eletrônico, e já estamos analisando a quarta colocada”, explica. “Todo o produto que a polícia vá utilizar precisa preservar a cadeia de custódia (procedimentos usados para documentar a história cronológica do vestígio de crimes)”.


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