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25 de março de 2019
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13:08

A “Gang dos 4” na Revolução Chinesa e a “Gang dos 4” de Steinbeck

Por
Sul 21
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Revolução cultural chinesa estimulava alunosa jogarem os professores “desviados” das janelas das salas de aula e espancava-os em público. (Reprodução)

Tarso Genro (*)

A “Gang dos 4” durante a Revolução Cultural na China, iniciada em 1966, pretendia “limpar” pela violência e pela barbárie das massas fanatizadas os resquícios do egoísmo burguês e do individualismo capitalista no país. A “Gang” estimulava os alunos jogarem os professores “desviados” das janelas das salas de aula, espancava-os em público, obrigava os velhos cientistas e artistas – com fama de indiferentes ao maoísmo – a recitar o Livrinho Vermelho com textos “clássicos” de Mao. E atacava quaisquer resquícios de liberdade de opinião também dentro do próprio Partido Comunista.

A Revolução Cultural Chinesa – hoje se vê com clareza – foi a morbidez fascista que emergiu de dentro da ideia de uma revolução socialista, assim como os traços do fascismo emergem, no Brasil, de dentro da ideia democrática da Carta de 88. Com outra Gang de 4, mas como métodos semelhantes, é inevitável uma certa analogia que me surgiu na memória, com a leitura de um livro de Steinbeck que me faltava conhecer.

Eddie, Mack, Hazel e Hughie são os quatro bons vagabundos da novela de Steinbeck, “A rua das ilusões perdidas” – a “Cannery Row” em Monterey na Califórnia – paragens marginais onde o modo de vida americano não prosperara em torno de fábricas de sardinhas, terrenos baldios, bordéis e pensões ordinárias. Os quatro bons vagabundos viviam de biscates, vendas de rãs, pequenos golpes e compras “fiado” na Mercearia do chinês Lee Chong, que “abria ao amanhecer e só fechava depois que o último níquel fosse gasto ou guardado para noite”.

O amigo principal dos amáveis vagabundos beberrões era Doc, o dono e trabalhador do Laboratório “Biológico Ocidental”, fonte de renda primária dos quatro caçadores de rãs, que eram vendidas aos centros de pesquisa, para os quais Doc fornecia aquela matéria prima destinada a experimentos científicos. Um dia este Laboratório é quase destruído numa festa épica que os quatro tentaram oferecer para Doc, que estava ausente, pois se atrasara na volta de uma viagem de trabalho.

As milhares de rãs ali alojadas foram soltas no meio da festança, que reunira toda a vadiagem das redondezas – pois todos adoravam Doc e festas – e elas invadiram a rua das ilusões perdidas, num improvável ataque da natureza contra a parte mais adormecida da cidade.

A escapada das rãs sobre a parte empobrecida de Monterey me ofereceu uma inevitável analogia com o Congresso Nacional – refém de outros 4 – com seus personagens prontos para invadir o país dos pobres com a sua reforma da previdência, aliás com o dono da reforma sempre ausente.

Traços de memória nesta confusão de sonhos doentios deste Brasil de democracia adormecida!

O que me liga, todavia, a estes quatro adoráveis vagabundos não é somente a festa e o bom Doc. Nem o chinês -renitente e paciente comerciante daquele bairro de Monterey – mas o episódio com os quatro detestáveis do nosso Brasil. É a seguinte narrativa do livro que me liga a eles: os vagabundos de Steinbeck invadiram uma propriedade em busca das benditas rãs, que sustentavam seu uísque de terceira a sua comida eventual e se depararam com um capitão-proprietário, que pretendia expulsá-los, sem apelação, daquela “propriedade privada”. (Será o Mourão? – pensei já meio adormecido?).

Após uma discussão, na qual Mack defende os interesses dos intrometidos na propriedade alheia, o “capitão-proprietário” da novela de Steinbeck cede e permite que a caçada às rãs continue. E ainda convida os invasores para conhecer sua casa.

O sedutor Mack vai de precursor – junto com o “capitão proprietário”- para tratar uma cadela “pointer” doente, que tinha recentemente parido algumas crias, não sem antes recomendar que os seus companheiros limpassem o local do acampamento, ajeitassem tudo e só depois o seguissem. Assim é feito. Até que Hazel, o mais ingênuo e atrapalhado dos amigos, chutando “areia sobre o fogo”, comenta: “aposto como Mack poderia ser Presidente dos Estados Unidos, se quisesse!” “Mas o que ele faria -se fosse Presidente- indaga um dos quatro” e acrescenta: “não há nada de divertido nisso!…”

John Steinbeck jamais imaginaria como seria possível que a nação americana, bem mais de meio século depois, elegesse não um vagabundo que até poderia dar certo como governante se tivesse algum sentimento de proximidade com seu povo, mas um incrível burguês fascista que desejaria que os seus vizinhos pobres pagassem um muro que os cercasse na humilhação e na fome.

Jamais imaginaria, ainda, que num país de homens e mulheres cordiais – como prescreve o mito da história brasileira – um grupo de 4, com um outro capitão, se apresentasse na cena pública fazendo sinais de “arminhas”, desejando e recomendando a morte dos adversários e fosse aceito por uma boa parte da sociedade como uma pessoa normal que pudesse livremente desgovernar um país.

Uma pessoa que, por autoria de uma hipnose midiática representasse um inconsciente perverso capaz de despejar sobre o povo pobre, negro, explorado, sobre as mulheres e os trabalhadores, a demolição de um mínimo senso solidário que em boa parte percorreu os nossos períodos democráticos e foi mantido inclusive nos períodos de exceção e ditadura.

A grande literatura, com suas metáforas, parábolas e analogias fantásticas, às vezes é mais certeira que as mais trabalhadas filosofias da História. Quem vencerá? A servidão voluntária ou a resistência da dignidade dos cidadãos de 88? Está em curso esta disputa.

(*) Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, Prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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