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15 de fevereiro de 2021
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12:01

Dois momentos para se pensar a autonomia do Banco Central

Por
Sul 21
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Dois momentos para se pensar a autonomia do Banco Central
Dois momentos para se pensar a autonomia do Banco Central
Foto: Agência Brasil

Flavio Fligenspan (*)

O Congresso aprovou na última semana a autonomia do Banco Central (BC). A grande imprensa comemorou a notícia como um sinal de maturidade da economia e da sociedade brasileira, eis que nos “aproximamos” de um modelo em vigor em boa parte do mundo depois de uma discussão de mais de duas décadas no Brasil. Diz-se que agora o BC será imune a pressões políticas. Pergunto-me de quem ou do que o BC ficará autônomo depois da sanção presidencial; o que muda de relevante na operação do BC em relação ao passado recente; a autonomia traz vantagem para a sociedade; e, por fim e não menos importante, será o BC autônomo em relação a pressões do mercado financeiro?

Não há respostas técnicas, isentas de viés político, para estas perguntas. Defensores da autonomia responderão de forma diferente de seus críticos, mas não me parece que os argumentos, corroborados por exemplos e fatos, sejam definitivos a favor da autonomia. Para não retroceder muito no tempo, analisemos apenas o período do Real, desde a metade de 1994. Lembro de dois momentos que vale a pena voltar a discutir.

O primeiro deles se refere aos primeiros quatro anos e meio do real, período conhecido como da “âncora cambial”, da metade de 1994 a janeiro de 1999, quando a taxa de câmbio era super controlada pelo governo, de forma a manter a moeda nacional valorizada e, com isso, as importações fartas e baratas. Esta era a verdadeira âncora que controlava a inflação no período. Para manter o controle sobre a taxa de câmbio, era preciso um volume grande de reservas estrangeiras, isto é, só era possível controlar o preço do dólar, se tivéssemos bastante dólar em caixa. E para tanto, a taxa de juros era absurdamente alta, chegando a mais de 60% ao ano em alguns momentos críticos, com o objetivo de atrair o capital especulativo que formava o estoque de reservas. A contrapartida disso era o crescimento rápido da dívida pública, que era quem pagava os juros.

Tanto mais este esquema era necessário, quanto mais se importavam mercadorias e maior era o déficit das contas externas a precisar de dólares para financiá-lo. O modelo funcionou assim por quatro anos e meio, sobrevivendo a três grandes crises, a do México em 1994/1995, a do sudeste asiático em 1997, e a da moratória russa em 1998. Sempre que o mundo balançava com uma crise, nós tínhamos que subir muito os juros, para tentar brecar a fuga do capital especulativo, que, se acontecesse em grande escala, levaria nossas reservas e não haveria como sustentar o preço do dólar. O Plano Real acabaria em questão de dias. Isto quase aconteceu na véspera da reeleição de FHC, mas ele correu para buscar o apoio do FMI e do sistema financeiro internacional, conseguindo uma ajuda milionária de emergência.

Passada a eleição, na virada de 1998 para 1999, a pressão foi mais forte e o Plano ruiu. Houve fuga cambial em massa, ficamos quase sem reservas e o BC não pode mais assegurar o preço baixo do dólar; acabou a “âncora cambial”. Contudo, o Presidente do BC, ainda nos últimos momentos, insistia que devíamos tentar segurar a “âncora”. Com que volume de reservas? Não havia resposta para esta pergunta simples e FHC o demitiu. Assumiu um novo dirigente no BC que, meses depois, implantou o sistema de metas de inflação vigente até hoje, com suas virtudes e defeitos não desprezíveis. E se o BC fosse autônomo naquele momento, o que aconteceria? Seu Presidente e diretores não poderiam ser trocados, logo estaríamos envolvidos numa aventura estranha de tentar controlar o preço de uma mercadoria – o dólar – que não tínhamos na mão. Difícil resolver. Que bom que o BC não era autônomo.

Um segundo momento que vale revisar é o do primeiro mandato de Dilma, especialmente na sua segunda metade. Os críticos da política econômica da época apontavam uma contradição entre a política monetária e a fiscal, a primeira de contração, através de elevação da taxa de juros básica, e a segunda de incentivo à atividade através dos gastos públicos. A crítica, do ponto de vista estritamente técnico, tinha sentido, visto que o mesmo Governo direcionava seus diferentes instrumentos em sentidos opostos, um a estimular o crescimento do PIB e outro a segurá-lo.

Imaginemos agora uma situação de normalidade, sem a pandemia e com um governo não dogmático, que não tenha preconceitos em relação ao uso da política fiscal como estímulo à atividade em momentos específicos do ciclo econômico, como numa recessão. Na hipótese de um choque de oferta, que envolva quebra de safra, taxa de câmbio alta e preços de commodities elevados no mercado internacional, a inflação estará além da meta.

O que faz um BC autônomo, que segue rigidamente o sistema de metas de inflação? Sobe os juros e manda uma mensagem “errada” ao público, de restrição da atividade em plena recessão. E se a política fiscal for, mesmo que por um período curto, estimulativa, estabelece-se a contradição, tal como os críticos da política de Dilma apontaram. Mas ninguém pode reclamar, pois o BC autônomo olha essencialmente para a inflação, baixa a cabeça e segue seu rumo, sem se preocupar. E o lado fiscal terá que duplicar esforços, com prejuízo das contas públicas, já que haverá uma força oposta dentro do próprio governo. Ah não, não é do governo, é autônoma. Qual é mesmo a vantagem? O que diriam os críticos da política econômica de Dilma, muitos dos quais hoje aplaudem a autonomia do BC?

(*) Professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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