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28 de dezembro de 2020
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12:52

Mais uma década perdida

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Mais uma década perdida
Mais uma década perdida
PIB per capita caiu algo próximo a 0,3% ao ano, em média, na década de 2010. (Cesar Itiberê/Fotos Públicas)

Flavio Fligenspan (*)

Desde o final da década de 1980 costuma-se dizer que “os anos 80 representaram a década perdida” para a economia – e para a sociedade – brasileira. A interpretação direta da expressão entre aspas diz respeito ao crescimento médio negativo do PIB per capita naquele período (-0,3% ao ano). Implícita está a noção de que o PIB per capita representa uma síntese das condições de vida da população de um país ou região.

Ora, a síntese em uma única variável de algo tão complexo nos conduz, quase inevitavelmente, a equívocos. É o caso; haveria muito mais a considerar e é isto que tenta o PNUD através do cálculo do IDH, que engloba, além do PIB per capita, variáveis que expressam avanços (ou recuos) na saúde e na educação. Não é perfeito, mas é bem melhor que uma única variável. De qualquer forma, não se deve desconsiderar o PIB per capita dentro de seus limites de indicador sintético, super sintético. Digamos assim, para uma informação rápida, se o PIB per capita cresce a taxas expressivas, como os 2,5% ao ano em média na década de 2000 no Brasil, é pouco provável que as condições de vida tenham piorado. Se, em contrapartida, a taxa média é negativa, é certo que tudo piorou.

Voltando à história, a recessão do início dos anos 1980 foi decisiva para puxar o crescimento do PIB para baixo, o que, em combinação com uma população que ainda crescia a taxas elevadas na época, produziu a ruína do PIB per capita. Contudo, é possível ampliar a noção de “década perdida” para além desta variável. No início da década, a economia brasileira se defrontava com pelo menos dois outros grandes problemas, a dívida externa crescente e impagável e a inflação que começava a ficar fora de controle. Após inúmeros episódios críticos durante a década, é possível dizer que passamos dez anos sem resolver nenhum dos dois problemas e ainda os agravamos, com metas não cumpridas junto a organismos internacionais e uma moratória externa, e, no âmbito doméstico, planos de estabilização monetária que não funcionaram. Para piorar, ações erradas nas duas frentes ainda retiraram o pouco de credibilidade do País. No front externo, a desconfiança se traduziu em dificuldades crescentes para “rolar a dívida”, e no plano interno a população passou a suspeitar das ações do governo. Como sempre é possível piorar o ambiente, ainda transformamos dívida externa em dívida interna financiada com taxas de juros estratosféricas, ou seja, criamos um novo problema.

Este final de 2020 encerra a segunda década do século XXI e nos deixa uma sensação ruim de que gastamos muito tempo para melhorar quase nada e muitas questões continuam sem respostas há 40 anos. O avanço importante se deu na frente externa, com a redução significativa da dívida externa, praticamente o seu controle. Nos anos 2000, a elevação dos preços internacionais das commodities agrícolas e minerais exportadas pelo Brasil, especialmente para a China, fez toda diferença, gerando superávits comerciais invejáveis e chegando até mesmo a superávits em conta corrente, o que é raro na história da economia brasileira. Hoje, com reservas de mais de US$ 300 bilhões, o tema das contas externas perdeu seu tradicional apelo dramático.

Há quem diga que a inflação também perdeu seu status de problema insolúvel. Este é um debate sem fim. Se é certo que vivemos tempos muito mais tranquilos que os dos anos 1980, sem a ameaça permanente da hiperinflação, também é verdade que o Plano Real não extinguiu o problema central da indexação – que estava na base da teoria do Plano – e expandiu em muito a dívida interna, com suas taxas de juros absurdas, que chegaram a mais de 60% ao ano em determinados momentos. Isto fez com que crescesse muito e rapidamente a dívida interna, transformando-a num enorme problema que frequenta qualquer debate de conjuntura e que contamina as opções de política econômica. Enfim, um controle ainda sub judice da inflação nos legou uma dívida interna líquida total próxima de 65% do PIB em 2019, antes do abalo da pandemia, e que nos custa algo próximo de cinco pontos percentuais de PIB a cada ano em juros, aproximadamente onze vezes o custo do Programa Bolsa Família, um robusto programa de transferência de renda.

Enfim, se em algumas frentes tivemos melhoras, deve-se lembrar que o indicador super sintético do PIB per capita caiu algo próximo a 0,3% ao ano, em média, na década de 2010, por coincidência o mesmo percentual dos anos 1980, o que caracteriza a década que ora se encerra também como uma “década perdida”. Porém, importa lembrar que agora a população cresce a taxas bem menores, ou seja, um crescimento per capita quase igual ao dos anos 1980 significa um crescimento do PIB ainda mais medíocre. Se nos anos 1980 a recessão do triênio 1981-1983 ajudava a explicar o desempenho medíocre, os onze trimestres recessivos entre 2014 e 2016 agora fazem o mesmo papel.

Pesquisadores da área de desenvolvimento econômico tentam explicar o fato de que a economia brasileira parece não sair do lugar com a passagem do tempo, enquanto outros países avançam, muitos com menos recursos que nós. O que faz com que a produtividade não cresça aqui com a mesma velocidade? Seria um problema da qualidade de nossas instituições? Parece não haver dúvida sobre isto, mas acredito que há uma questão de fundo, constitutiva da sociedade brasileira, e que está na base de qualquer explicação para o lento crescimento: a histórica e cruel concentração de renda e riqueza. Se ela ajuda a explicar, visto que está na base, é também consequência do processo de baixo crescimento, já que o modelo “escolhe” quem vai prejudicar e que vai privilegiar. Não se deve esquecer que o PIB per capita, como média que é, esconde quem está acima e quem está abaixo da média. Assim, além de crescer a taxas negativas na década de 2010, o indicador sintético ainda escondeu o velho tema da distribuição, sempre presente e sempre assombrando a sociedade brasileira.

(*) Professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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