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10 de junho de 2020
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20:42

A falácia das comparações

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Sul 21
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A falácia das comparações
A falácia das comparações
Ato contra o fascismo, o racismo e em defesa da democracia, dia 6 de junho, em Porto Alegre. Foto: Luiza Castro/Sul21

Céli Pinto (*)

Estudos comparados na área da história ou da ciência política necessitam pressupostos teóricos e metodológicos muito sofisticados. Quando se trata de comparar fenômenos que aconteceram em épocas diferentes, eles correm o risco de caírem em famosas e quase sempre desastrosas lições da história.

Em momentos de grave crise, de desesperança, de quebra radical do cotidiano, buscar alento em eventos do passado é quase natural, uma forma de sobrevivência. Fenômenos de outras épocas podem nos indicar erros e acertos. Entretanto, por terem acontecido em diferentes condições de emergência, a parcimônia na comparação deve ser muito grande, para não cairmos em esparrelas que se tornam quase manuais de autoajuda.

Esta longa introdução foi necessária para colocar o tema que quero discutir: a comparação que anda sendo feita entre os diversos movimentos pró-democracia da atualidade e a campanha das Diretas Já, em 1983/4. A tentativa de aproximar os dois movimentos carece de base histórica, tanto pelas condições de emergência, como pelas características de cada um.

Comecemos pelas condições de emergência. Em 1983/4, o Brasil vivia ainda sob o regime militar, mesmo que abrandado desde outubro de 1978, com o fim do AI5, e com a lei da anistia de 28 de agosto de 1979. O país começou a reorganizar seu sistema político partidário, a partir da lei de 1979, que extinguiu os partidos criados pela ditadura, o MDB a Arena, e instituiu o multipartidarismo.

A lei do fim do bipartidarismo, pensada por Golbery do Couto e Silva, coincidentemente o último militar a ocupar a Casa Civil até a eleição da extrema direita, em 2018, não surgiu de um movimento preocupado com a democratização do país, mas decorreu do crescimento do MDB, partido que cada vez mais reunia uma oposição forte ao regime e que ameaçava eleitoralmente a ARENA, defensora do governo. Se, por um lado, Golbery conseguiu seu intento de implodir o MDB, não pode controlar o avanço de um novo partido, o PT, que se constituiu oficialmente em fevereiro de 1980. O Coronel ainda obteve uma vitória, que pensava grande, mas foi de Pirro, ao entregar a legenda do PTB à sua aliada Ivete Vargas, tirando-a de Leonel Brizola, que fundou o PDT no mesmo ano.

Com estas condições de emergência, ocorreu o movimento das Diretas Já. A reorganização política do país, somada à crise econômica e uma alta inflação, assustava os militares que pretendiam manter o controle através de eleições indiretas, realizadas por um colégio eleitoral. Neste momento surgiu, na Câmara de Deputados, a famosa emenda que instituía a eleição direta para presidente da república a partir de 1984. Conhecida pelo nome de seu propositor, um deputado bastante apagado do MDB de Mato Grosso, a Emenda Dante de Oliveira catalisou uma plêiade de demandas políticas, sociais, econômicas e culturais que circulavam por praticamente todos os grupos sociais do país. O regime tinha chegado ao seu limite. A campanha pelas Diretas Já tinha características particulares. Primeiro porque possuía um objetivo muito específico, segundo, porque juntava políticos de todos os matizes entre o centro e a esquerda e anunciava o novo. Pela primeira vez no palanque, um operário e líder sindical aparecia como liderança forte, de mãos dadas com Ulisses Guimarães, Fernando Henrique Cardoso, Brizola, Tancredo Neves, entre outros menos estrelados.

As Diretas Já foram derrotadas pela combinação de forças da direita no Congresso com o já atuante centrão, mas a derrota foi muito relativa. As oposições, por 4 meses, haviam reunido milhões de pessoas nas ruas em grandes comícios. A votação da emenda foi assistida em telões nas capitais dos estados e o sentimento de frustração tinha novas forças políticas a partir das quais podia se expressar: FHC e Lula eram novidades, Brizola trazia sua história de luta pela democracia como currículo. Não vou me estender aqui nos eventos que se sucederam à campanha das Diretas Já, apenas marcar que, naquele momento, a ditadura civil-militar, que havia dominado o país por 20 anos, mostrava que não tinha mais forças para se reproduzir no poder.

E agora, quais são as condições de emergência dos movimentos que se ensaiam? O Brasil, desde 1988 – ano da promulgação da Constituição que substituiu a emenda contitucional de 1969, que regia o pais de forma autoritária e ditatorial – até 2014, quando o candidato derrotado nas eleições presidenciais, Aécio Neves, não aceitou o resultado das urnas, viveu 26 anos de um aceitável regime democrático, apesar de seus limites, que se expressavam na limitada representação da população e pela fragilidade em enfrentar as profundas desigualdades sociais do país.

Entretanto, a partir de 2014, o PSDB, (e aí vale, até por ironia, a comparação com Golbery) prepara um golpe para impedir que o PT ganhasse novamente as eleições presidenciais , mas acabou estilhaçado. É sempre importante lembrar que foi o PSDB que entrou com pedido de cassação da chapa Dilma-Temer no TSE, foi o PSDB o mentor do impeachment, o Senador Antonio Anastasia, foi quem elaborou a peça de ficção que condenou Dilma, naquela altura chamada de técnica pelos jornalistas, agora arautos da democracia. Golbery achava que, enquanto o MDB estivesse unido, o governo militar não mais ganharia eleições; o PSDB achou que, enquanto o PT e Lula existissem como alternativas eleitorais, eles não ganhariam novamente as eleições presidenciais. A ditadura militar de Golbery veio abaixo e o candidato do PSDB, Geraldo Alckmin, teve menos de 5% de votos nas eleições de 2018.

Ao golpe montado pelo PSDB, soma-se a politização do judiciário, através de uma figura menor, alçada à popularidade por circunstâncias absolutamente contingentes. O juiz de primeira instância, com claras limitações intelectuais, grande vaidade e com uma história de vida ligada aos setores conservadores do conservador estado do Paraná, tornou-se paladino da justiça e o menino de ouro de uma classe média inculta, conservadora e assustada com os tímidos avanços sociais proporcionados pelos governos petistas. O juiz, associado a um grupo de jovens procuradores justiceiros, alguns com características de fundamentalistas religiosos, fizeram o serviço sujo e colocaram o maior líder popular do país na cadeia. O magistrado provinciano nem disfarçou, ganhou, como prêmio pelos serviços prestados, o cargo de Ministro da Justiça e a promessa de uma posição vitalícia como ministro do STF. O final da história deste triste personagem já é sabido, não percamos tempo com ela.

O resultado do projeto do PSDB foi a eleição de Bolsonaro, que jogou o país em um total caos, sem rumo, com um ministério deletério e com interesses escusos, próximos à contravenção, no estado do Rio de Janeiro, apoiado por uma parcela de militares de alta patente, principalmente do Exército. Hoje vivemos uma situação de párias na comunidade internacional e, internamente, na condição de miséria humana, em todos os sentidos.

Este cenário não tem nada a ver com os últimos anos da ditadura militar, quando a esperança falava mais alto.

Frente ao descalabro em que vivemos, têm aparecido vários movimentos pró-democracia. O Manifesto “Somos Muitos” cita a campanha das Diretas Já, afirmando que, naquela oportunidade, diferenças foram esquecidas. Não é bem assim: não houve militar golpista nos palanques das diretas. Não estavam lá os protagonistas do golpe que tirou João Goulart do poder. No final do referido manifesto, lê-se: “Com ideias e opiniões diferentes, comungamos dos mesmos princípios éticos e democráticos. Queremos combater o ódio e a apatia com afeto, informação, união e esperança”.

O máximo que se pode dizer sobre este enunciado é que ele é literatura de baixo nível. Aulinha de autoajuda. Um manifesto político tem que terminar propondo ações, não “mimimi”. É certo que não se pode desprezar 150 mil assinaturas, mas como saber se elas não estão lá apenas por estarem cheias de afeto?

O movimento # somos 70% foi iniciativa do economista Eduardo Moreira, um newcomer na luta pela democracia e pela justiça social, que transita com desenvoltura em todo o espectro político brasileiro e se coloca em oposição a Bolsonaro. O manifesto do movimento, diz: “Somos mais de dois terços da população do Brasil e invocamos que partidos, seus líderes e candidatos agora deixem de lado projetos individuais de poder em favor de um projeto comum de país”. Ou isto é um projeto pessoal, ou é uma grande ingenuidade política. Partidos têm lados, têm ideologias, têm projetos distintos, interesses distintos. Abrir mão de todos os projetos para apoiar o quê? Apoiar a quem? Quais são as ações propostas por este movimento? Neste universo estão muitos dos 56 milhões que votaram em Bolsonaro, que aplaudiram o impeachment de Dilma, a prisão de Lula, que achavam o juiz provinciano o principio do bem. Qual é o projeto? Por que estar juntos? Em que se constitui a democracia defendida?

Em síntese, não sou contra a nenhuma destas iniciativas, mas não existem evidências de que elas tenham efetividade e qualquer objetividade política. Não se colocam politicamente, parece, que sem perceber, continuam com o discurso antipolítica que elegeu Bolsonaro. Se quisermos buscar exemplo nas Diretas Já, elejamos uma causa, que não é o afeto, mas a derrocada, com ações políticas concretas, do projeto fascista em curso no país. Busquemos 1 milhão de assinaturas pelo impeachment ou renúncia de Bolsonaro. Vamos enfrentar as questões sem medo de perder. A política não é um lugar de troca de afetos, de mensagens adocicadas de esperança, mas de luta entre contrários, entre adversários, entre projetos que, muitas vezes, se excluem. Isto não tem nada a ver com ódio, mas com um mínimo de senso de responsabilidade e de realidade. Que surjam muitos manifestos, que se articulem muitas demandas, que sejam construídos projetos pelo quais lutar, que tenham a liberdade e a igualdade como pressuposto. Projetos que exponham as chagas das desigualdades. Projetos que não disfarcem os privilégios. Que enfrentem as mazelas deste país chamado Brasil.

(*) Professora Emérita da UFRGS; Cientista Política; Professora convidada do PPG de História da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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