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1 de janeiro de 2012
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08:50

Primo pobre das artes, o circo respira

Por
Sul 21
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ronaldofotografia.blogspot.com

Geraldo Hasse
Especial para o Sul21

Quem vê o simpático Chalé da Praça XV, tão bem instalado ao lado da antiga estação dos bondes no miolo de Porto Alegre, não imagina que há cerca de 135 anos, nesse mesmo lugar, operava um dos primeiros circos fixos do Brasil, coisa rara nas Américas, onde já se utilizavam as lonas. Montado em madeira pelo artista-empresário português Albano Pereira, o Circo Universal aplicou aqui o modelo fixo, comum desde o século XVIII na Europa, onde muitos desses espaços tornaram-se posteriormente verdadeiros teatros ou anfiteatros.

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Autorizado pela Câmara Municipal a funcionar ali por um ano, o Circo Universal ocupou o espaço por um triênio (1875/1878), período em que promoveu até bailes de grande afluência popular, além de alugar suas instalações para espetáculos diversos, inclusive para elencos de circos ambulantes. Albano Pereira só desmanchou a estrutura de madeira sob coação judicial. Após cerca de mil dias de espetáculo, o Circo Universal foi removido do seu ponto sob o pretexto de que era preciso ajardinar a então chamada Praça Conde d’Eu, antigamente conhecida como Praça Paraíso, porque ali funcionou primitivamente um prostíbulo, cujas profissionais desafiavam os rapazes a conhecer o paraíso… Por volta de 1880, foram construídos diversos canteiros e alguns quiosques, entre eles o chalé, cujo projeto original, de 1886, reverencia a ascensão econômica dos descendentes dos imigrantes alemães, com prósperos negócios no centro da capital. “Foi assim que o chalé se consagrou como ponto de encontro e comércio de bebidas, mas desde então a cidade cresceu sem planejar um espaço para receber circos”, diz a historiadora Lara Rocho, que acabade concluir o curso de História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Ela pesquisou especificamente os bastidores da história do Circo Universal numa época em que a maior casa de espetáculos da capital era o Theatro São Pedro, inaugurado em 1858.

Historiadora Lara Rocho | Ramiro Furquim/Sul21

Desde o fechamento do circo de Albano Pereira – depois de explorar um teatro de variedades na Rua Voluntários da Pátria, o bravo português foi montar um circo fixo em Rio Grande, onde também teve encrencas com a Câmara e a Justiça –, o poder público da capital nunca mais se preocupou em oferecer espaço para espetáculos circenses, que se tornavam mais e mais itinerantes, graças às ferrovias e, meio século depois, às rodovias.

Obrigados a pedir licença para se instalar nas cidades, os circos são autorizados a funcionar em terrenos baldios. Sobrevivem de teimosos, reproduzindo-se por atavismo, amor à arte ou falta de melhores oportunidades de trabalho para seus integrantes. “Veja os circos que se instalam à beira do Guaíba, completamente distantes do seu público potencial, como aconteceu recentemente com o Vostok”, diz Lara Rocho, que integra o grupo Cabaré Valentim, no qual faz acrobacias aéreas em tecido e outras coisas.

Em sua pesquisa, Lara tentou descobrir/explicar por que os administradores de Porto Alegre, depois de autorizar um circo fixo das dimensões do pavilhão Universal na segunda metade do século XIX, investiram numa série de reformas urbanas, entre elas os ajardinamentos das praças –, inviabilizando alguns dos espaços urbanos recorrentemente utilizados pelo circo e por outras expressões da arte de rua.

“Após o ajardinamento da Praça Conde d’Eu”, lembra Lara, “nunca mais um circo pode se instalar ali, porque a própria estrutura física da praça foi alterada com a instalação do chafariz, dos canteiros desenhados, do cercamento, do chalé etc.”.

Vida Precária

Consagrada em todo o mundo por reunir no mesmo espaço manifestações artísticas (dança, teatro, música) e habilidades humanas (acrobacia, malabarismo, mágica, adestramento animal), a arte circense terá sido depreciada em Porto Alegre pelo maior fascínio do cinema? Foi vítima do prestígio do teatro? Sentiu a concorrência do rádio e da TV? Ou perdeu espaço para interesses econômicos de maior peso?

No livro “Palco, Salão e Picadeiro em Porto Alegre no Século XIX” (Livraria do Globo, 1956), no qual faz o inventário do processo cultural de Porto Alegre nos anos 1800, o escritor Athos Damasceno Ferreira (1902-1975) descreve até a planta do Circo Universal, mas acaba por reforçar o conceito de que, apesar de seu grande apelo popular, o circo configura um conjunto ligeiro de artes menores, próprias para divertir o público, nada mais.

Também poeta e crítico de artes, Athos Damasceno jamais imaginou que a partir dos anos 1980 a magia circense renasceria sob lonas e palcos onde milhares de crianças e adolescentes aprendem a praticar as artes do tecido, da lira, do trapézio, da dança, da música, dos malabares e da palhaçada — por que não?

Talvez por sua proximidade com emissoras de TV e produtores de cinema, ou mesmo por sua tradição cultural vinda dos tempos em que foi capital do país, o Rio de Janeiro proporcionou melhores condições de sobrevivência às artes circenses. Ali foram armadas escolas – como a Escola Nacional de Circo – que se tornaram ponto de origem de excursões com patrocínio público e privado. “A criação de políticas públicas para as artes circenses revela certo avanço”, reconhece Lara Rocho, que aponta como positiva a existência de uma coordenação de circo na Funarte, do Ministério da Cultura.

Em Porto Alegre, como em outras capitais e até em cidades do interior, há grupos de artistas que vivem de exibições em festas e eventos. Muitos deles treinam ao ar livre no Parque da Redenção e outros frequentam, por exemplo, espaços como o Centro Cenotécnico da Rua Voluntários da Pátria, 1370, um galpão do Estado também usado como depósito de material por diversos órgãos públicos. Por necessidade ou mesmo por opção, alguns artistas circenses se exibem nas ruas em sinais de trânsito. Quase todos vivem literalmente na corda bamba. Uma de suas saídas profissionais é dar aulas. Nessa luta para sobreviver transmitindo o que sabem às novas gerações, os circenses batem de frente com os profissionais de educação física.

Misturando aulas, ensaios e espetáculos, o espaço circense mais estável de Porto Alegre é o Circo Girassol, que funciona na Vila Bom Jesus (Rua Doutor Sinval Saldanha, 286), com patrocínio de entidades públicas e privadas. Sua principal estrela é Débora Rodrigues, que brilhou no Programa do Faustão da TV Globo, na primeira década do século XXI. Outro grupo ativo é o Cabaré Valentim, que fez sua 14ª apresentação anual no último dia 10 de dezembro. Dele participam diversos artistas, entre eles o malabarista Luis Cocolichio, que mantém uma loja de artigos esotéricos e equipamentos circenses na Cidade Baixa (Rua da República, 304) e Tainá Borges, instrutora de dança aérea no Circo Híbrido (Travessa Comendador Batista 63, Cidade Baixa), onde a partir de 2012 será instalado o Circo de Sala, com espetáculos abertos ao público.

Salto com Rede

Cirque Du Soleil | Foto: Divulgação

Uma das referências do renascimento da vida circense no Brasil é o fabuloso Cirque Du Soleil, que combina qualidade artística e gestão empresarial, no que se inclui a utilização de recursos eletrônicos e de marketing. Fundado em 1984 em Montreal, no Canadá, o Soleil corre mundo patrocinado por grandes empresas e aparece com destaque em horários nobres de programas de televisão, como o Fantástico da TV Globo. A aura internacional que envolve esse circo canadense o ajudou a obter recursos de incentivos fiscais para excursionar pelo Brasil em 2008. Após uma temporada de 10 meses, com ingressos de até R$ 400, o Soleil foi embora com cerca de R$ 130 milhões, metade dos quais advindos da Lei Rouanet, assunto explorado por Rodolfo Alexandre Cascão Inácio em artigo da revista Le Monde Diplomatique Brasil de abril de 2009.


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