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28 de outubro de 2011
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16:53

Machismo, feminismo e homofobia, farinhas do mesmo sexismo

Por
Sul 21
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O Brasil inteiro fez piadas ou riu da ministra Iriny Lopes, da Secretaria de Políticas Públicas para Mulheres, quando ela se indispôs recentemente com a propaganda da Hope, que colocou no ar a modelo Gisele Bündchen como exemplo de mulher que deve usar o corpo seminu para conseguir vantagens financeiras do marido. Sabemos que Gisele Bündchen em sua vida pessoal não precisa do cartão de crédito do marido e podemos supor que ela mesma, uma mulher educada e inteligente, não faz beicinho para tirar qualquer vantagem do marido com seu corpo. Rir de estereótipos nos coloca em um lugar de “esperteza”, faz sentido porque vemos a realidade do outro, não a nossa. As piadas sexistas têm uma incrível e atávica lógica na desidentificação. O otário é o outro, o perverso é o outro! No caso da piada elaborada pela Hope, o sexismo não é só machista, mas também feminista, já que além da mulher usar o corpo como mercadoria, o homem é colocado como um banana que pode ser facilmente enganado por uma mulher sedutora e oportunista.

Foi um verdadeiro imbróglio sexista porque as piadas que se sucederam em relação à ministra recaíram contra a figura feminina de Iriny Lopes, que não é, digamos assim, exatamente uma beldade. Por conta do argumento esdrúxulo de que toda mulher feia é recalcada e invejosa, encerrou-se o assunto, a propaganda está no ar e, como é costume na mídia brasileira, não houve aprofundamento no tema. Venceu o sexismo, as ideias sexistas estão livres como graciosidades para a televisão brasileira, supostamente sem efeitos colaterais e em nome de um humor que só funciona ao explorar preconceitos contra os seres humanos. É curioso que diante de tanta coisa em tamanho gigante — contra os seres humanos em geral — para fazermos piadas e aplicar estereótipos em grande escala e a nosso favor, ficamos presos em debochar uns dos outros em nossas pequenas distâncias biológicas e sexuais.

O termo sexismo se refere a um conjunto de idéias ou ações que privilegiam um dos gêneros — masculino e feminino — ou uma orientação sexual, em detrimento de outro gênero ou de outra opção sexual. O sexismo pode ser machista, feminista ou homofóbico. Ideias sexistas partem sempre de generalizações sobre determinados comportamentos que têm origens no confronto entre nosso ser biológico e nosso ser cultural. A união entre esses dois bichos, visceral e cultural pode ser mesmo engraçada, fala de nosso desenvolvimento ou subdesenvolvimento psíquico, mas há muito o que fazer para além do sexismo quando os publicitários descobrirem que o ser humano pode ser engraçado por ser humano, por ser um animal moral, independente do que tenha ou não no meio das pernas e como extrai prazer disso. A publicidade tem a pegada errada nessas piadas gagás e evidentemente conservadoras porque o sexismo visa fortalecer estereótipos contra nós mesmos e multiplicar preconceitos em quem já os cultiva inconscientemente, doentiamente e, infelizmente, nos inocentes em frente à TV.

O programa Zorra Total faz piadas com mulheres que sofrem assédio nos metrôs e ônibus lotados, os telespectadores riem, mas a moça que desmaiou em um vagão na semana passada após ter sido assediada por um advogado não acha mais graça, se é que um dia achou alguma graça desse tipo de piada. As pessoas que a socorreram no episódio e viram o homem, literalmente com o membro íntimo para fora, também provavelmente ficarão com nojo desse tipo de piada para sempre. O sindicato dos metroviários de São Paulo reagiu contra o programa da Rede Globo.

Quem acha graça da piada do metrô apertado são os homens que sentiram desejo alguma vez no metrô, mas seguraram a onda, como manda o bom senso. Os homens que são capazes de assediar no metrô não riem, eles se excitam com as cenas do programa, vêem a condição ideal banalizada pela TV e identificam-se com a parte ativa da coisa. Autorizados pelo sentimento de unificação com os demais homens, sentem-se sadios em uma atitude doentia e literalmente se jogam. O incentivo é óbvio, inquestionável, é uma apologia ao crime.

A graça de imaginar uma mulher sendo assediada no metrô é sexista porque parte do princípio estapafúrdio de que as mulheres no fundo gostam, seríamos todas representantes da Dama do Lotação e os homens não poderiam, diante dessa evidência lírica, resistir, machos que são, de esfregarem-se em pessoas desconhecidas, só porque essas pessoas são mulheres.

A ideia de que não existe humor politicamente correto está desatualizada. Dentro de guetos foi possível manter durante anos piadas racistas, homofóbicas, machistas e ofensivas contra quem não fazia parte do gueto. Mais recentemente surgiram as piadas feministas, que visam desqualificar os homens como seres que não sabem cozinhar vários pratos ao mesmo tempo, substituir o papel higiênico no banheiro, cuidar dos filhos e outras atividades estigmatizadas como exclusivamente femininas. Mas de quais guetos podemos falar com o desenvolvimento das comunicações de massa?

Os veículos de comunicação de massa estão aí para democratizar a informação e as relações humanas e não estamos sabendo lidar com isso. As discussões acirradas nas redes sociais representam um comportamento primário, mas dão sinais claros de que a sociedade está amadurecendo; pode contestar, protestar e reivindicar direito à diversidade. Piadas sexistas, racistas e ofensivas induzem, multiplicam, banalizam e validam comportamentos ignorantes e violentos contra pessoas apenas porque as pessoas têm um gênero, determinadas características, preferências ou condições. Elas se encaixavam num mundo que evoluiu de forma pasteurizada, com papéis pré-estabelecidos por gêneros, mas não se justificam diante da explosão do direito à diversidade.

Achar graça da piada da Hope muita gente achou, mas por desidentificação. Certamente um amigo que foi vítima de uma mulher que usou de seu dinheiro contando mentiras não achou graça. Assim é com os homossexuais diante da homofobia e com os homens de maneira geral, que parecem estar dormindo diante das provocações de piadas feministas, afinal não deve ser tão cômodo viver sob a exigência de conseguir ser pai participante, ativo, provedor, máquina de fazer dinheiro e ao mesmo tempo ser desqualificado como sem graça, sem jeito, sem delicadezas.

Se formos pensar nas nossas filhas e filhos podemos ver as coisas sob outro ângulo. Achamos correto e ensinamos nossas filhas a tirar proveito de seus pares, a usar artimanhas de interesse para uma relação afetiva e sexual? Fazemos isso de fato com nossos pares? Ensinamos nossos filhos que somos homens babacas e que nos relacionamentos humanos de homens com mulheres o que vale é o homem ser um provedor antes de qualquer prazer, acima de todas as suas qualidades humanas? Ensinamos a nossos filhos que diante do desejo no metrô lotado devem atacar as mulheres?

Por que então achamos aceitável que isso seja passado como uma verdade engraçada na TV? Qual é a graça afinal de ser uma mulher desonesta ou ser um homem tarado?

Que efeito pode ter na cabeça de uma menina criada numa família que cultiva o sexismo ver a moça bonita se comportando daquela forma? E na cabeça dos meninos, como será essa história de ser enganado com beicinhos e trejeitos por uma deusa da beleza?
Imagina-se que da mesma forma muitos homens e mulheres já sentiram desejo num metrô apertado, mas o que ocorre quando isso é banalizado, incentivado sistemática e repetitivamente pela TV?

Para quem pratica uma educação não sexista com os próprios filhos desde pequenos, é provável que a propaganda não tenha efeito algum, não chame atenção e as meninas e meninos nem entendam e nem busquem entender a piada. É possível que uma garota pergunte ao pai qual a graça de uma propaganda como a da Hope e ele responda que antigamente se acreditava que as mulheres deveriam fazer poses e trejeitos para conseguir alguma vantagem com os homens, mas hoje isso não tem mais sentido e o legal é ser verdadeira e honesta. Provavelmente quem não pratica uma educação sexista nem liga a TV para assistir Zorra Total, muito menos autoriza que os filhos assistam.

A realidade que temos na massa da população, entretanto, não é essa. Infelizmente o Brasil bomba em incentivos à manutenção e multiplicação de preconceitos e a televisão vem fazendo a sua má parte nisso, tanto em programas humorísticos quanto em propagandas, nos mais variados horários.

Passar para as crianças a ideia de que tirando a roupa as coisas se resolvem financeiramente é algo grotesco do ponto de vista humano, especialmente em um país pobre como o nosso. Passar a ideia de que mulheres podem ser “adquiridas” conforme a conta que se têm num banco é valorizar, multiplicar e intensificar um problema que sempre existiu e que já vem desumanizando as relações e aumentando o buraco das diferenças faz muito tempo. Incentivar o eventual desejo natural de intimidade, que compreensivelmente possa surgir quando corpos se apertam em um ônibus ou metrô, tornando isso exequível é definitivamente doentio. A piada poderia justamente ser o contrário: como segurar a onda do desejo dentro de um metrô!? E teria muito mais graça, já que sentir desejo não é exclusividade masculina. Que gracioso seria um homem colocando sua pasta de trabalho entre ele e a moça em frente, esforçando-se para não tocá-la, não sentir seu perfume, a fim de não passar a idéia de que é um troglodita.

Mas afinal, quem são essas meninas e meninos que supostamente seriam vítimas de propagandas sexistas? Nossas filhinhas que na idade adulta podem frequentar os divãs para livrarem-se da histeria culturalmente adquirida? Nossos meninos que na idade adulta podem frequentar os consultórios terapêuticos para livrarem-se do machismo que atravancará suas relações com a mulher e os filhos?

Não, o sexismo, como toda forma de preconceito, recai duramente e mais pesadamente sobre aqueles que dificilmente poderão tratar suas feridas internas.

O problema das propagandas sexistas é que elas se dirigem a um determinado público, aquele que ri por não se identificar, mas atingem muitos outros públicos que podem se identificar usando como lição de vida prática.

O risco de perdermos o senso de humor em decorrência do apelo ao politicamente correto se justifica apenas nas mentes de humoristas conservadores que só sabem explorar o preconceito como forma de humor. Vida sem humor não é vida boa o bastante, não mesmo, vida boa o bastante é com humor a favor de todos, humor pela diversidade, humor contra o preconceito, humor focado no confronto entre nosso animal visceral e nosso animal cultural. Está caindo de maduro o humor para uma vida melhor. E sim, pode ser humor que fale de sexo e sexualidade.

http://youtu.be/_pqK8uaiTxM

E as piadas podem ser apenas engraçadas, sobre a natureza humana, sem falar de sexo necessariamente.

Ou podem ainda ser somente sensíveis e apontar soluções humanizadas para nossa realidade caótica.

http://youtu.be/NlxgpB7qdI0

Cláudia Rodrigues, jornalista, terapeuta reichiana, autora de Bebês de Mamães mais que Perfeitas, 2008. Centauro Editora. Blog: http://buenaleche-buenaleche.blogspot.com


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