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31 de março de 2018
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11:25

A educação pelas armas. O Instituto Cultural Floresta e nossos passados presentes (por Fernando Nicolazzi)

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Sul 21
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A educação pelas armas. O Instituto Cultural Floresta e nossos passados presentes (por Fernando Nicolazzi)
A educação pelas armas. O Instituto Cultural Floresta e nossos passados presentes (por Fernando Nicolazzi)
Dani Barcellos/Palácio Piratini
55 famílias e empresas arrecadaram R$ 14 milhões para comprar veículos, armas e outros equipamentos para as forças de segurança do Estado. (Foto: Dani Barcellos/Palácio Piratini)

Fernando Nicolazzi (*)

A situação não é nova. Empresários e famílias ditas “de bem”, figuras e figurões notáveis da nossa “boa sociedade”, com amplo acesso aos meandros legislativos e executivos do Estado, todos preocupados com a ordem social e os meios para o indivíduo prosperar de forma segura no caminho do sucesso econômico, tomam a iniciativa de contribuir com o aparato estatal para que este cumpra, de forma mais eficiente e rápida, as funções que dele são esperadas. Considerando, então, que uma das principais funções do Estado moderno é assumir para si o monopólio da violência, resta refletir sobre o que tal situação realmente significa.  Há exemplos históricos importantes que permitem orientar a reflexão.

Em 1969, com o objetivo de funcionar como engrenagem de guerra interna e fomentar mecanismos garantidores da segurança pública contra aqueles considerados inimigos da ditadura civil-militar, foi criada pelo II Exército a Operação Bandeirante (Oban). A cerimônia de instalação do órgão repressor contou com autoridades do Estado e representantes da sociedade civil, empresários e convidados de honra que eram servidos com coquetel e salgadinhos para prestigiar a ocasião.

A sede onde funcionou o centro da engrenagem situava-se na 36a Delegacia de Polícia, na cidade de São Paulo, e contou com a benevolência financeira de amplos setores da sociedade brasileira, ansiosos por garantir os recursos necessários para o funcionamento adequado da operação. Coube ao então Ministro da Fazenda, Antônio Delfim Neto, estabelecer os contatos entre os responsáveis militares da Oban e os empresários nela interessados, entre os quais diversos banqueiros, vários industriais e alguns empreiteiros. A Federação das Indústrias de São Paulo teve protagonismo fundamental neste processo. Ou seja, a violência da ditadura militar contou com forte colaboracionismo civil e empresarial.

As formas de auxílio eram variadas. Alguns empresários forneciam refeições congeladas para alimentar as pessoas envolvidas, enquanto outros faziam doações importantes de equipamentos, como carros e caminhões. Alguns meios de comunicação também atuaram fortemente em apoio à Oban, divulgando notícias falsas a respeito das operações realizadas. Parte das verbas doadas servia de gratificações para agentes da repressão que se destacavam em suas atividades. Há relatos ainda de que alguns empresários estiveram presentes in loco durante algumas destas atividades, que iam desde a ação de inteligência prévia, passando pela investigação policial e culminando muitas vezes na detenção, tortura e morte dos considerados “inimigos do Estado”.

A respeito dessas relações entre a sociedade civil, o empresariado brasileiro e as forças repressivas do Estado durante nossa última ditadura, quando reconhecidamente foram cometidas as graves violações contra os direitos humanos relatadas pela Comissão Nacional da Verdade, a historiografia recente oferece importantes trabalhos, como as premiadas pesquisas de Mariana Joffily, ganhadora do Prêmio do Arquivo Nacional e publicada com o título No centro da engrenagem, em 2013, e o livro do ano seguinte, Estanhas catedrais, que garantiu a Pedro Henrique Pedreira Campos o Prêmio Jabuti de 2015.

Mas deixemos a história deste passado recente, que ainda dá sinais recorrentes de não querer passar, e voltemos nosso olhar para o presente imediato, que insiste ainda em trazer o cheiro forte daquele passado. Em outras palavras, mesmo reconhecendo que se trata de situações bastante distintas e que a sociedade modificou sensivelmente a forma de encarar seu comprometimento com o Estado, é inegável que as relações entre passado e presente são mais complexas do que permite supor uma simples compreensão linear e cronológica do tempo histórico.

Desde o começo de março passou a ser noticiada a “doação”, por parte de um grupo de empresários e famílias locais, de 14 milhões de reais para o “combate à violência” no estado do Rio Grande do Sul. O montante foi destinado à aquisição de viaturas policiais, coletes e armamentos. O material escolhido foi feito com um objetivo particular, que é informado por um dos líderes do grupo, Leonardo Fração: “uma das coisas mais importantes é a polícia mostrar força com equipamentos adequados para que as pessoas se sintam seguras”. Para o empresário, portanto, o intuito é apenas garantir a sensação de segurança por meio da aparência de força; estamos no plano das maquiagens políticas. O grupo, além disso, definiu os locais em que o equipamento deverá ser utilizado, uma vez que os batalhões da polícia militar contemplados atuam em zonas que “concentram intensa atividade comercial”. Medidas futuras ainda incluem a doação de mais recursos para a construção de presídios.

Ou seja, estamos novamente diante de uma situação em que o empresariado financia o aparato repressor do estado, definindo o que será utilizado por este aparato e onde ele deverá ser mobilizado. Em outras palavras, são empresas que, por meio da institucionalidade estatal, elas mesmas mostram sua força para a sociedade. A inspiração para o ato, conforme informado por Fração, veio da experiência realizada em regiões dos Estados Unidos, da Colômbia e do México. Porém, mesmo sem serem declaradas, pergunto se é forçar muito a interpretação ao sugerir algumas coincidências de inspiração com experiências de nosso passado recente.

A “doação” foi feita por um grupo de 30 pessoas e 25 empresas organizadas em torno do Instituto Cultural Floresta (ICF), do qual Fração e presidente, cujo objetivo divulgado é “tornar o Rio Grande do Sul um ambiente seguro através da segurança e da educação, onde seja possível a cada um desenvolver plenamente o seu potencial e participar de maneira produtiva do desenvolvimento econômico e social do Estado”. São, portanto, duas as frentes de ação do ICF que, à primeira vista, podem ser enunciadas numa escala de prioridades, a segurança pública em primeiro lugar, a educação vem depois. Se para a área da segurança pública o grupo já deu mostras de como pretende atuar, resta saber o que intenta fazer quando o assunto é a educação. Algumas hipóteses podem ser aventadas.

Entre os parlamentares que deram apoio à iniciativa e estavam presentes à cerimônia que oficializou a “doação”, podemos encontrar dois defensores gaúchos da ideologia Escola sem Partido que, não por acaso, tiveram suas candidaturas financiadas por pessoas e empresas ligadas ao ICF. Considerando que tal ideologia nada mais é que uma campanha de violência contra professores e em defesa de um modelo que reprime a educação pública democrática em proveito de um modelo familiar e privado de formação moral, não há como desvencilhar uma coisa da outra: a educação, para eles, é um assunto de segurança pública.

Cabe destacar que um daqueles defensores participa também da paradoxal campanha “Armas pela vida”. Não é exagero sugerir, com isso, que estamos diante de uma iniciativa que, em sua essência, considera viável como projeto social a educação pelas armas. Afinal, se o foco de atuação é a segurança pública e a educação, caberia uma indagação básica: por que 14 milhões de reais em material bélico e não em material escolar? Por que, ao invés de projetar a construção de presídios, não se projetam a construção de escolas ou a reforma de espaços escolares precarizados? Por que a força de nossa sociedade deve ser demonstrada por policiais mascarados e não por professores com condições razoáveis de trabalho? Por que considerar a educação como simples consequência da segurança pública, e não como uma de suas mais fundamentais condições?

Tais perguntas, no entanto, são meramente retóricas, pois o presidente do ICF já deu sua resposta ao afirmar que “a violência é um problema absolutamente ‘democrático’. Todas as classes sociais são prejudicadas. Elegemos o problema mais urgente a ser resolvido”. Obviamente, não é necessário grande esforço para se compreender que o sentido da democracia contido na afirmação é totalmente descabido de fundamento empírico. Afinal de contas, se a violência é mesmo “democrática”, por que ela costuma ser mais democrática com a população pobre, na sua grande maioria negra, que vive nas periferias das cidades do Rio Grande do Sul? Pois falar de violência não se resume apenas em número de assaltos ou homicídios, mas sim na falta de condições básicas para se viver uma vida com a mínima dignidade. Isso sem falar na própria violência policial que incide sobre aquela mesma população e que agora poderá mostrar mais força com os novos equipamentos doados. O combate à violência desejado pelo Instituto incidirá igualmente sobre estas outras formas?

A Operação Bandeirante, um modelo peculiar de parceria entre Estado e sociedade civil durante a ditadura civil-militar, foi criada no contexto de um golpe que ocasionou um longo e violento processo de concentração de renda e de exclusão social em nossa sociedade, sem falar novamente das graves violações dos direitos humanos já conhecidas. Resta saber o que resultará deste outro modelo de parceria mantida entre empresários, aparato estatal e forças policiais gaúchas, no âmbito de outro golpe de Estado. Pois, como já foi noticiado sobre a doação feita pelo ICF, a lógica que está por traz da iniciativa é o raciocínio de que “uma cidade mais segura é melhor para a economia”. O que esperar, então, do ponto de vista de uma sociedade democrática, dessa junção entre cidade segura e prosperidade econômica? A cidade será segura para quem e para quem será a economia próspera?

Quando segurança pública e educação são inseridas conjuntamente apenas dentro do quadro da razão neoliberal, devemos tomar cuidado com seus efeitos perversos, pois é justamente nela que o Estado detém o monopólio da violência e as empresas detêm o monopólio do Estado. É no neoliberalismo que a economia precede e anula uma outra noção fundamental para o viver em cidades: a cidadania, ela que normalmente é a primeira das vítimas dos golpes de Estado e das ditaduras civis ou militares. E não há cidadania sem educação pública e democrática.

Se, enfim, naquele passado que se faz presente empresários e pessoas “de bem” atuavam como financiadores e espectadores da barbárie, qual o papel assumido hoje pelo empresariado, neste presente que ainda exala tanto o passado? Historiadores e historiadoras poderão um dia escrever mais essa história em pesquisas que também poderão ser premiadas. Isso não impede, porém, que desde agora o conjunto amplo da sociedade se mostre atento para que a barbárie não se repita.

(*) Professor do Departamento de História da UFRGS

 


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