Opinião
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15 de fevereiro de 2024
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07:47

As forças armadas e a democracia brasileira (por Céli Pinto)

Fachada da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, no RIo de Janeiro (Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil)
Fachada da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, no RIo de Janeiro (Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil)

Céli Pinto (*)

Um país que incorpora em sua vida política o conceito de militares legalistas não pode ser considerado uma democracia razoavelmente consolidada.

Para o exercício da democracia, as instituições militares não podem ser pensadas como espaço privilegiado. As Forças Armadas, aqui ou alhures, são instituições que se organizam a partir de uma rígida hierarquia, têm como princípio o direito constitucional o uso legitimo da força e como fim último, mesmo que teoricamente – como é o caso do Brasil – a guerra.  Há uma cultura militar não democrática, formadora dos jovens que se dirigem à instituição, que também merece atenção. Boa parte dos militares oficiais têm origem em famílias de pais militares e estudaram em escolas militares, aprendendo a cultura mesmo antes de entrarem na instituição. Aqueles que não pertencem a famílias militares,  em sua grande maioria provêm de famílias que adotam posições não progressistas, tanto no sentido de educação quanto de política. 

Isto posto, cabe pontuar que nenhuma das características acima deve ser vista como empecilho a regimes democráticos. As Forças Armadas, pelo menos a curto e médio prazo, são, no mínimo, um mal necessário para os estados nacionais. O problema não é sua existência, mas quando se arvoram a atores políticos, com intuito de ameaçar experiências democráticas. Este é o problema brasileiro.

Poderia começar o argumento com questões concernentes ao Exército e à Marinha ainda no século XIX, a partir da Guerra do Paraguai, quando passaram a interferir na política, até darem o golpe que transformou o país em uma República, em 1898. Também poderia discutir o movimento tenentista de 1920, sua presença na chamada Revolução de 1930 e no golpe de 1937. Nas tentativas de impedir JK de assumir a presidência da república, com os episódios de Aragarças e Jacareacanga, na década de 1950, na postura golpista em 1961, quando da renúncia de Jânio Quadros, e finalmente no exitoso golpe de estado de 1964, que submeteu o Brasil a uma dura ditadura militar por mais de 20 anos.

O roteiro acima, cheio de percalços, conseguiu sucesso em 1964, quando finalmente os militares brasileiros chegaram ao poder com força para nele se manterem por muito tempo, apoiados por significativas, mesmo que minoritárias, parcelas da sociedade brasileira.

As ditaduras, em geral, premiam Forças Armadas que nunca exerceram seu papel ou corrompem aquelas que antes eram profissionais.  No caso do Brasil, essas duas características estão presentes.  Ao tomarem o poder em 1964 assumiram  a posição sempre desejada de  um ator político  protagonista, associados aos setores mais reacionários e  enriquecidos da sociedade. A crise no poder militar, a partir de 1978, quando o AI5 deixou de ter validade e a Anistia Ampla Geral e Irrestrita promulgada um ano após, criou um imaginário, nas forças democráticas de direita, centro-direita e centro-esquerda, de que, com a constituição de 1988, o país entrava em uma era democrática e transformava suas Forças Armadas em profissionais. Os fatos de que tiveram força para sair da ditadura sem sofrer nenhuma responsabilização pelas torturas e mortes pelas quais foram responsáveis e de terem ganho um artigo na constituição para chamar de seu, o famigerado Art. 142, foram esquecidos.

Forças Armadas profissionais? Ledo engano. Em 2011, quando a Presidenta Dilma Rousseff tomou a medida que os dois presidentes democratas anteriores, FHC e Lula, não tiveram coragem de tomar, criando a Comissão Nacional da Verdade, para investigar as graves violações aos direitos humanos cometidos durante a ditadura militar, os generais  que haviam estado no poder se revoltaram. A manifestação do ex- ministro  do Exército, General  Leônidas Pires Gonçalves, em 2012, traduz muito bem o sentimento da  corporação :  “injustiça que está sendo feita com o Exército (,,,) Embora o discurso seja de que não haverá punição com esta Comissão da Verdade, já estão promovendo a maior punição ao Exército, que está tendo o seu conceito abalado injustamente” (Correio Braziliense, n. 19002, 05/06/2015. Política, p. 3). Quando da apresentação do relatório da Comissão, em dezembro de 2014, o General da ativa Sérgio Etchegoyen chamou o relatório de “leviano”, ”patético”, um esforço para “reescrever a história’. ( Santos, 2018.141). 

As reações à Comissão Nacional da Verdade e seu relatório, que foram muitas, mostraram  que havia uma espécie de acordo entre as forças políticas que governavam o país e as Forças Armadas: não mexam nos crimes acontecidos dentro dos quartéis, ou por mando militar em outros locais, e nós nos comportaremos como  uma corporação militar profissional.  A coragem de Dilma Rousseff rompeu o pacto.

Não é por acaso que um deputado federal, oriundo dos porões do baixo clero na Câmara de Deputados, deu seu voto no teatro do impeachment de Dilma  Rousseff, presidido pelo atual  Ministro da Justiça Ricardo Lewandovski, declarando: “… pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo exército de Caxias, pelas Forças Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de tudo…”  Como todos e todas sabemos, o deputado chamava-se Jair Messias Bolsonaro. Seu voto não é apenas uma declaração desqualificada de um indivíduo menor, ele tem uma importância muito particular. Pela primeira vez uma autoridade política, defensora do regime militar passado, no caso um deputado militar aposentado, admitiu em público a existência de tortura, a defendeu e elogiou um torturador pelo nome, pertencente ao oficialato do Exército.  

A existência política de Bolsonaro, para além de uma caricatura fascista grotesca, se apresenta à nação através de uma ode ao Exército torturador. Cansadas de brincar de profissionais, as Forças Armadas se apresentam como fiadoras de  Messias Bolsonaro, posição que mantêm até se tornarem o principal bloco de apoio de seu governo, entre 2019-2022. 

No momento em que escrevo, a Policia Federal investiga a armação de um golpe do governo Bolsonaro que fracassou três vezes. Antes das eleições, quando o General-ministro Augusto Heleno indicou a necessidade de “virar a mesa”, em uma reunião ministerial em julho de 2022. Uma segunda vez, após as eleições presidenciais, quando foi preparada uma minuta de golpe. De acordo com a emissora de TV Globonews, com fontes da Polícia Federal, no dia 7 de dezembro, houve uma reunião para discutir o golpe com a presença, entre outros, do General Freire Gomes, Comandante do Exército, e do Almirante Garnier Santos, Comandante da Marinha (Programa Studio I, de 14/02/2024). Em um terceiro momento, com duração pública mais longa, o golpe começou com acampamentos de militantes bolsonaristas na frente dos quartéis e acabou com o 8 de janeiro, quando hordas de fanatizados foram muito bem organizados para invadir as sedes dos três poderes da República. Quem os comandou ainda não sabemos, mas não temos dúvidas de quem foram os anfitriões dos acampamentos “democráticos”. 

Isto posto, parece ficar demonstrado que o Brasil nunca teve Forças Armadas profissionais e os militares oficiais sempre se colocaram como atores políticos, inclusive se pensando com muito mais direitos do que os políticos de carreira, ou as autoridades constituídas do judiciário. Reiteradamente se acharam com direito de intervir. Seu momento de ‘profissionalismo’ foi útil apenas como parte de um acordo para não serem julgados pela tortura e mortes que protagonizaram durante a ditadura comandada com mãos de ferro. Se entre eles existem indivíduos que são democráticos e não tolerariam um golpe, isso não tem importância. Não são heróis, são tão somente militares  coniventes com uma corporação que não tem qualquer apreço ao legalismo.

(*) Professora Emérita da UFRGS; Cientista Política; Professora convidada do PPG de História da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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