Opinião
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26 de dezembro de 2023
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07:00

Ocean Vuong – belos por um instante (Coluna da APPOA)

Ocean Voung (Reprodução/Youtube)
Ocean Voung (Reprodução/Youtube)

Lucia Serrano Pereira (*)

“Lembre-se” você dizia toda manhã antes de sairmos para o ar frio de Connecticut, “não chame a atenção dos outros para você. Já basta você ser vietnamita”.

Que impacto o romance de Ocean Vuong, a narrativa de tom autobiográfico, desdobrando a vida narrada desde a América – em Hartford, e fazendo as voltas por vezes líricas e oníricas ( os sonhos e a chegada dos pesadelos) indo ao tempo da família em Saigon.

Ocean Vuong é um jovem poeta já premiado desde muito cedo, nos Estados Unidos. A poesia, as letras, o salvaram, diz. Vive em Massachussets, professor de Literatura em Amherst (a mesma de Emily Dickinson, em outra geração). Trinta e poucos anos, com uma história de vida que chega a desnortear. Ele chega aos EUA com dois anos, com a mãe, tias e avó, todos vietnamitas, com uma passagem pelo centro de refugiados nas Filipinas.

No tempo da guerra no Vietnã sua avó se relaciona com um soldado americano, com quem casa  e tem três filhas. O soldado volta à América para visitar a família de origem  mas as contingências não permitem mais o retorno a Saigon. A mulher precisa se separar das filhas que vão para um orfanato, precisa conseguir dar conta da vida; os vietnamitas que tinham se relacionado com os americanos passam a ser mal-vistos, e fica tudo muito difícil.

Mais adiante conseguem reunir-se, e então o caminho de saída do Vietnã.

A mãe de Ocean tem o bebê aos 18 anos, e como ela é “raça mista”, não pode trabalhar em seu país, sob as novas leis do regime comunista. Mas tem direito a emigrar aos Estados Unidos pela lei que recebe os descendentes de ex-soldados americanos.

A vida acontece.

E é desde a vida na América, hoje, que seu filho escreve Sobre a terra somos belos por um instante. Já é bem comovente a escrita que vem na forma de carta, endereçada a uma mãe que possivelmente nunca chegou a aprender a ler e escrever, mas que desejava isso para seu filho. Entre autor e narrador e misturando um pouco as coisas (sabemos que é terreno delicado, mas mesmo assim, ousemos) temos esse paradoxo: uma carta que talvez nunca pudesse ser lida pela mãe, então, e por isso mesmo, entregando sua vida de menino adentrando a adolescência de uma forma que talvez nunca chegasse a ser endereçada para uma mãe. A sexualidade que descobre com o amigo Trevor, a dor e a luta  por sobreviver e achar um lugar para si, para receber um olhar de valor em uma cultura de chegada que no mais das vezes é hostil com o de fora posto em situação de inferioridade.

O romance de Vuong nos acossa com o amor, a dor, a beleza das descobertas, a dimensão trágica da vida. Quando menina -o narrador convoca a mãe à sua memórias – você viu sua escola desmoronar depois de um ataque de bombas, tinha cinco anos e nunca mais voltou a pisar em uma escola. “Nosso vietnamita é uma cápsula do tempo, uma marca de onde tua educação terminou, virou cinzas. Mãe, falar na nossa língua materna é falar apenas parcialmente em vietnamita, mas integralmente em guerra.”

A guerra e a desorientação das vidas, as passagens, os deslocamentos, o estar na condição de refugiado – campos extensos no tempo e no espaço – e essa liga aguda com o que enfrenta nosso mundo de hoje.

De forma contundente, sentimos o trabalho incalculável e invisível que implica, além de tudo, poder habitar outra língua. O nome do menino dado pela avó era Cachorrinho, Little Dog. Tem a ver com a tradição de origem. Lan, mãe da mãe, é um dos personagens mais impressionantes da trama; é o eco constante da desorientação que a guerra produziu naqueles jovens que viam dizimadas suas aldeias, ainda com o napalm na memória do corpo ( Lan por vezes, no apartamento de Harford, se joga no chão com o estouro de fogos de artifício, com um barulho mais brusco, com um detalhe, uma batida onde a diferença dos tempos se apaga por um instante, força inconsciente da repetição, circuito demoníaco, podemos dizer com Freud). Passado, presente em liga poderosa.

Ela explica para o menino: na aldeia em que havia sido criada, muitas vezes o menor, o mais frágil recebia o nome de coisas ruins e desprezíveis como  diabo, criança fantasma, macaquinho, cabeça de búfalo, etc. Porque os espíritos maus, ao vagarem buscando crianças de boa saúde, ao ouvirem o nome de algo ruim sendo chamado para o jantar, não se interessariam e passariam por cima da casa, não escolhendo essa criança. De início ele se perguntava: que tipo de mulher dá nomes de flores para si e para as filhas, e chama o neto de cachorro? Termina por entender, foi nomeado assim por uma mulher que cuida dos seus.

Outro nome do menino dado pela mãe, “Ocean”, tem a ver com esse novo habitar e o esforço de achar esperança e aposta, de poder se situar e mesmo falar em meio aos mal-entendidos.

Rose trabalhava em um salão de manicure que empregava imigrantes. Falando com uma cliente, durante o serviço, ela queria se referir ao mar de uma praia – beach, mas pronunciava como bitch, puta. A cliente sugeriu que ela dissesse então “ocean”, que evitaria o mal-entendido. E Rose se encantou com a palavra, assim renomeando o filho que se chamava Vuong Quôc Vinh.

A mãe sempre extenuada pelo trabalho duro das muitíssimas horas no salão, em sua folga decide ir com Lan e Ocean às compras. Quer comprar rabo de boi para fazer bún bòh huê para a semana de inverno que vão ter pela frente. No balcão do açougueiro ela pede em sua língua “Duôi . Anh duói không?” E a narrativa do açougueiro troçando, da avó e da mãe se contorcendo e mugindo, apontando em seu corpo o lugar suposto de um rabo, agora mais um homem espanhol, eles rindo, mas não conseguem entender. “Você virou para mim, o rosto molhado, suplicando: Diz pra eles. Vai lá e diz pra eles o que a gente precisa”. Naquele momento ele não podia, não tinha recursos para tanto. nem inglês suficiente, nem condições subjetivas. Estava quase morto de vergonha.

Mas Ocean Vuong vai buscar o trânsito pela língua e pela vida apesar de tudo. Lembro aqui o jovem Nabokov que também perde tudo na Rússia, a não ser a língua, ele diz. E vai ser um dos grandes escritores no novo habitar, na transformação/transporte para a língua de chegada, o inglês.

Prosa lírica, a de Vuong, que em meio ao trágico das vidas que podem ser “caçadas” pensa – uma vida, se a comparamos com a história de nosso planeta, uma vida individual pode ser tão curta como um piscar de olhos. “[…] então ser belo, mesmo que do dia em que você nasce até o dia em que você morre, é ser belo apenas por um instante.”

Chegadas e partidas, o pôr do sol nesse tempo em que pode se confundir o nascer com o ocaso, mundo avermelhado que parece o mesmo, perda da noção de ocidente e oriente. Cachorrinho neste momento, olhando o por do sol com Trevor em cima do telhado do galpão, os campos de plantação de tabaco à frente, fica surpreso com o efeito : o modo com em alguns minutos, poucos, ele muda o jeito como as coisas são vistas “ – incluindo nós mesmos”.

‘Porque o pôr do sol, assim como a sobrevivência, existe apenas à beira de seu desaparecimento. Para ser belo precisa ser visto, mas ser visto sempre permite que você seja caçado.”

Neste natal, os votos de que se pudesse criar uma comunidade que venha a eliminar não o belo, mas sim a caçada.

(*) Lucia Serrano Pereira é psicanalista, membro da APPOA.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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