Opinião
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2 de novembro de 2023
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07:51

As margaridas africanas contam suas histórias (por Silvana Conti)

Silvana Conti (Divulgação)
Silvana Conti (Divulgação)

Silvana Conti (*)

Neste novembro negro, compartilho um fragmento do meu livro que é organizado a partir do mestrado em políticas sociais e serviço social da UFRGS. O livro “As margaridas africanas trabalhadoras negras do serviço público municipal de Porto Alegre – Fios e tramas do racismo estrutural” será lançado neste dia 05 de novembro, às 18h na feira do livro.

 “Margaridas Africanas. Flores de muitas cores, muitos cheiros, muitas folhas. “Sem folhas, não tem vida. Sem folhas não tem nada.” 

As mulheres negras de África e da diáspora expressam as margaridas africanas em muitas identidades: são belíssimas, fortes, resistentes, exibem extrema beleza e realeza. E sorriem. 

Sorriem para mostrar a sabedoria peculiar das mulheres negras, feministas muito antes da palavra ser forjada nas literaturas acadêmicas. Sorriem para mostrar que suas ancestrais ensinam para elas – e só para elas – todos os segredos do axé. 

Sorriem para exibir a realeza das Yabás e Orixás que vivem nelas. 

Sorriem para que as crianças negras do Brasil e do mundo inteiro também sorriam ao se darem conta que descendem de Lélia Gonzales, Rainha Nzinga, Elza Soares, Bell Hooks, Rosa Parks, Princesa Aqualtune (…). 

Sorriem. Também se colocam sérias. Estudam, trabalham, batalham, se impõem, exigem respeito, exigem espaços de poder.

São jovens, velhas, crianças, bem pretas, menos pretas, lésbicas, heterossexuais, trans, muito sábias, jogadoras de futebol, lavadeiras, artistas, intelectuais, servidoras públicas, mães-de-santo, médicas, ativistas dos movimentos sociais, professoras, sindicalistas, assistentes sociais, dentistas, enfermeiras, psicólogas, operárias, desempregadas, mães que criam seus filhos e filhas sozinhas, domésticas, dançarinas…

São mulheres. São negras. 

Ocupam os mais diferentes espaços no mundo e no Brasil: do Amapá ao Rio Grande do Sul. Estão em todos os lugares. São rainhas. São princesas. Não precisam de coroas, nem capas, nem carrosséis, nem fadas-madrinhas, nem príncipes e reis que as protejam. 

Seus cabelos protegem e ornamentam a cabeça, além de desafiarem heroicamente a lei da gravidade: crescem para cima! 

As capas são desnecessárias: a melanina que cobre suas lustrosas peles as ornamenta naturalmente. A força ancestral as leva para onde quiserem ir. As Yabás as orientam. 

São feministas, lutam por sua sobrevivência, de suas famílias e descendentes desde sempre.

São Margaridas Africanas que têm a sabedoria das anciãs e a suavidade das crianças. E sorriem. E ensinam. 

As flores e folhas não são apenas beleza. Têm perfume. Têm axé.” [1]

Diálogos com Grada Kilomba e as marcas do racismo

Grada Kilomba entrevistou mulheres da diáspora africana, em cujos relatos falam de suas experiências na Alemanha [2]. Passamos então a construir um diálogo entre algumas falas das entrevistadas, por Kilomba (2019) no livro “Memórias de Plantação: Episódios de racismo cotidiano”, que trata de várias questões, como o gênero, o racismo, a pós-colonialidade e a branquitude. Trata também de experiências coletivas universais. 

A autora trata como experiências coletivas universais o que consideramos conexões entre as Margaridas Africanas, desta forma, encontramos mais mulheres negras que se entrelaçam em vivências do racismo, mesmo vivendo em lugares distantes e distintos. 

As entrevistas realizadas pela autora focaram nas narrativas biográficas, a fim de possibilitar a reconstrução da vivência negra dentro da lógica racista. Foram realizadas entrevistas com seis mulheres africanas ou da diáspora (entre elas, uma afro-brasileira) que viviam na Alemanha, mas apenas as narrativas biográficas de duas dessas interlocutoras são densamente analisadas, a de Alicia (afro-germânica) e a de Kathleen (afro-estadunidense). 

Para Kilomba (2019), essas narrativas biográficas revelaram informações vastas e detalhadas acerca do racismo cotidiano, pois são testemunhos de duas mulheres residentes na Alemanha que nos ajudam a melhor compreender a racialização na sociedade alemã. 

A autora realiza um registro entre o biográfico e o etnográfico, tal como faz consigo mesma ao longo de todo o livro. A escravatura foi o primeiro movimento de globalização em que pessoas foram escravizadas a fim de serem levadas a outro continente para enriquecer um terceiro continente. É uma história global que une vários continentes. Kilomba (2019, p. 80) fala de racismo e do trauma do racismo, das feridas abertas que não saram:

[…] porque a história foi mal contada, contada exatamente ao contrário, e há sempre cortes que vão atingindo o mesmo sítio, e fala também do feminismo negro, que foi invisibilizado, mas lutou pelo seu próprio espaço. O feminismo ocidental fez um erro fatal, que foi dividir o mundo entre meninas e meninos, entre mulheres e homens, sendo as mulheres oprimidas pelos homens. 

A autora aponta que descolonizar o conhecimento é encontrar e explorar formas alternativas e emancipatórias para sua produção, que estejam fora dos parâmetros clássicos.

A interdisciplinaridade é um modo de descolonizar e transgredir as formas clássicas de conhecimento. Kilomba (2019) trabalha com dois conceitos fundamentais: a interdisciplinaridade e as configurações de poder. As últimas devem ser repensadas para abrir espaços para outras biografias, pessoas, vozes, perspectivas. Isso automaticamente traz um conhecimento emancipador e alternativo. 

A história colonial tem sido muito negada no mundo ocidental, mas se trata também de um processo. Todavia, não é um processo moral. É muito importante lembrar que racismo não tem a ver com moralidade, tem a ver com responsabilidade. 

Kilomba (2019, p. 27), nos apresenta que:

O racismo é um modo bastante habilidoso de uma longa história de silêncio imposto. Uma história de vozes torturadas, línguas rompidas, idiomas impostos, discursos impedidos e dos muitos lugares que não podíamos entrar, tampouco permanecer para falar com nossas vozes.

Passamos a apresentar falas das entrevistadas com seus respectivos codinomes. Falas estas, que então denominadas como diálogos, demostrando que suas histórias de vida se conectam com as histórias de vida apresentadas por Grada Kilomba em seu trabalho. Entende-se que a escrita, dessa forma, as coloca em diálogo, não importando quem disse, e sim o que é dito como marca do racismo estrutural.

Lélia Gonzales, Rainha Nzinga, Rosa Parks, Elza Soares, Bell Hooks e Princesa Aqualtune em diálogos com Grada Kilomba, os quais podem ser vistos a seguir.

Primeiro diálogo

“No jardim de infância, era uma menina muito tímida, chorava, fiz o jardim chorando, chorando, chorando, eu não queria ir para a escola, me lembro e tenho fotos minhas no jardim com os cabelos puxados. A gente ficava japonesa, de tanto que puxava o cabelo, para não ficar com os cabelos crespos.”

Dialogando com Kilomba (2019), mais do que a cor de pele, o cabelo tornou-se a mais poderosa marca de servidão durante o período de escravização. Uma vez escravizados(as), a cor da pele de africanos(as) passou a ser tolerada pelos senhores brancos, mas o cabelo não, que acabou se tornando um símbolo de “primitividade”, desordem, inferioridade e não-civilização. O cabelo africano foi então classificado como “cabelo ruim”.

Segundo diálogo

“Eu sempre fui meio desengonçada. Ninguém queria ser meu par, eu nunca era a mais bonita da escola, eu nunca tive a possibilidade de me sentir uma pessoa, eu me sentia a cabelo de bombril, me chamavam de cabelo de bombril.”

Dialogando com Kilomba (2019), tal informação aparentemente privada não é, de modo algum, privada. Não são histórias pessoais ou declarações íntimas, mas sim relatos de racismo. Tais experiências revelam as complexas dinâmicas entre raça, gênero e poder, e como a suposição de um mundo dividido entre homens poderosos e mulheres subordinadas não pode explicar o poder da mulher branca sobre mulheres e homens negros.

Terceiro diálogo

“Meu nariz é chato, minha boca é… eu sou bocuda, eu sou beiçuda, eu sou negra bunduda, morria de vergonha, que bunda grande… hoje tudo que se quer é ter bunda grande, bunda e teta grande, tudo que as mulheres querem, mas eu me achava inadequada.”

Dialogando com Kilomba (2019), originalmente a palavra negro deriva da palavra latina para cor preta: niger. Porém, no final do século XVIII, a palavra negro já havia se tornado um termo pejorativo, usado estrategicamente como forma de insulto para implementar sentimento de perda, inferioridade e submissão diante de pessoas brancas (Kennedy,2002).

Neste sentido, quando a palavra negro é proferida, a pessoa que o faz não se refere somente à cor da pele negra, mas também à cadeia de termos associados à palavra em si: primitividade, animalidade, ignorância, preguiça, sujeira, caos. Essa cadeia de equivalências define o racismo.   

Considerações Finais

 Neste artigo, apontamos o racismo estrutural e destacamos aspectos da formação sócio-histórica do Brasil em mais de quatro séculos de racismo. Esta realidade está evidenciada através das Margaridas Africanas que trouxemos neste estudo que compuseram histórias coletivas e formas de resistência.

Evidenciou-se, o entrelaçamento entre classe, raça e gênero, trazendo as lutas das mulheres negras em seu tempo histórico, compreendendo que a histórica desigualdade sobre as mulheres trabalhadoras sempre foi desfavorável.  Destaca-se que, principalmente pós golpe de 2016, com a profunda crise desencadeada pela Covid-19, o desemprego entre elas se agravou e trouxe ainda mais dificuldades objetivas de sobrevivência. 

 Para Collins (2019), uma das dimensões da opressão de mulheres negras é a forma específica com que o trabalho dessas mulheres é historicamente explorado para a construção e manutenção do capitalismo. A autora traz que a interseccionalidade é, ao mesmo tempo, um conceito analítico de “projeto de conhecimento” e um instrumento de luta política, no combate às opressões múltiplas e imbricadas, com vistas à emancipação. 

 Segundo Valadares (2007), é necessário compreendermos que a necessidade da luta contra a opressão de gênero se insere na luta contra todos os elos de opressão e pela conquista de uma sociedade radicalmente nova, sem discriminação de gênero, de raça e de classe.

Assim, não é possível admitir uma maquiagem ao racismo. O racismo estrutural exige mudanças profundas e concretas para que não seja eternizado o cenário de desigualdade racial.

 Em síntese, buscou-se compreender o racismo estrutural e as lutas sociais vividas pelas trabalhadoras negras servidoras públicas da cidade de Porto Alegre, especialmente no que diz respeito às formas de organização e resistência contra o racismo estrutural e o racismo institucional no serviço público municipal. Bem como busca-se, a partir dos resultados do estudo, contribuir com a construção de formas de enfrentamento por meio de políticas públicas e com a formação política do movimento social e sindical. 

 E na continuidade do leito da luta, reafirmamos que há muito tempo as mulheres negras resistem, lutam e denunciam o racismo, as violências sofridas diariamente. Na busca pela criminalização do racismo, fizeram a disputa no período de construção da Constituição Brasileira, na proposição e implementação das políticas afirmativas e legislação antirracista, na persistente denúncia do genocídio da população negra, feminicídio das mulheres negras, na luta pela lei das cotas,  a sub-representação da população negra nos espaços de poder, dentre outras reivindicações que expõem a dureza do perverso projeto político que se pauta no entrelaçamento do racismo com o sexismo  e com o capitalismo.

Notas

[1] Poesia escrita por Ariane Celestino Meireles.

[2] O livro aqui destacado da autora Grada Kilomba é o resultado do seu trabalho de doutorado em Filosofia na Universidade Livre de Berlim, Alemanha, no qual contou com uma bolsa de estudo da Fundação Heinrich Böll. Foi publicado pela primeira vez em 2008, em Berlim, sendo o segundo livro de sua autoria.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018.

______. Capitalismo e crise: o que o racismo tem a ver com isso? Boitempo, 2020. Disponível em:
https://blogdaboitempo.com.br/2020/06/23/capitalismo-e-crise-o-que-o-racismo-tem-a-ver-com-isso/. Acesso em: 17 de fev. de 2021.

COLLINS, Patrícia Hill. Pensamento Feminista Negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. Tradução Jamille Pinheiro Dias. São Paulo: Boitempo, 2019.

DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe. São Paulo: Boitempo, 2016. 

KILOMBA, Grada. Memórias de Plantação. Episódios de racismo cotidiano. Tradução de Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Editora Cobogó, 2019. 

VALADARES, Loreta. As Faces do Feminismo. Ed. Anita Garibaldi, 2007.

WERNECK, Jurema. Racismo Institucional, uma abordagem conceitual. Geledés – Instituto da Mulher Negra, 2013.   

(*) Silvana Conti – Mestra em Políticas Sociais e Serviço Social pelo PPGPSSS/UFRGS. Lésbica – feminista, militante da luta antirracista. Vice presidenta da CTB\RS. Dirigente nacional da UBM. Membra do comitê central do PCdoB.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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