Opinião
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13 de novembro de 2023
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13:43

As guerras e a economia global (por André Moreira Cunha, Luiza Peruffo e Andrés Ferrari)

Faixa de Gaza Foto:  Majdi Fathi/16October
Faixa de Gaza Foto: Majdi Fathi/16October

André Moreira Cunha, Luiza Peruffo e Andrés Ferrari (*)

Choque de Civilizações e a Contabilidade da Morte

O “choque de civilizações”, anunciado em 1993 no ensaio seminal de Samuel P. Huntington, ganhou contornos reais depois de 11 de setembro de 2001 e da subsequente “guerra global ao terror”. Desde então, a macabra contabilidade da morte não autoriza dúvidas: nenhum país contribuiu mais para a destruição de vidas humanas no século XXI do que os Estados Unidos (EUA), sempre com o apoio dos seus aliados. Nas estimativas da Brown University, foram 940 mil mortes diretas, das quais metade de civis. Com a destruição da estrutura econômica e social das regiões afetadas pelo poder bélico estadunidense, outras 3,6 a 3,8 milhões de pessoas morreram. Ao todo, quase cinco milhões de óbitos e outras trinta e oito milhões de pessoas que perderam seus lares. Ademais, o governo estadunidense já gastou US$ 8 trilhões em sua ofensiva global, montante que equivale a 8% do produto interno bruto mundial de 2022. As guerras destroem vidas e constroem fortunas, especialmente nas empresas diretamente associadas ao complexo militar-industrial da potência hegemônica.

A Rússia tem uma relação umbilical com a guerra. Gregory Carleton, professor da Tufts University, em seu “Russia: the history of war”, nos lembra que, no último milênio, o território russo foi o campo de batalha dos conflitos mais intensos, sendo objeto do desejo de conquista de distintos poderes. Sua expansão territorial, por sua vez, também se deu a partir da centralização do poder estatal e das guerras. A Rússia de Putin não surgiu do nada. Seu líder máximo jamais disfarçou o desconforto com a perda de influência russa depois da queda da União Soviética. Ele busca recuperar a autoimagem e a grandeza do seu país e, por isso mesmo, tem se envolvido em vários conflitos em seu entorno estratégico, conforme registra Mark Galeotti em seu “Putin’s Wars”. 

Nas estimativas das Organizações Unidas, quase dez mil civis morreram na Ucrânia. Para o Council on Foreign Relations foram vinte mil civis mortos e seis milhões de refugiados. Entre militares dos dois lados, as distintas fontes sugerem a possibilidade de até 200 mil mortes. Do ponto de vista financeiro, a Ucrânia absorveu US$ 350 bilhões em doações direcionadas ao esforço de guerra. A despeito das negativas oficiais, a imprensa internacional informa que o presidente ucraniano vem se deparando com pressões de aliados para negociar o fim desta guerra. A emergência de um novo foco de tensões no Oriente Médio redirecionou a atenção dos EUA e dos demais poderes ocidentais para além do front ucraniano. Fala-se, cada vez mais, na “fadiga da guerra”.

Desde o desmonte da União Soviética, as tropas russas estiveram envolvidas em conflitos de Ossétia do Sul (1991-1992), Prigorodny (1992), Transnístria (1992), Abkhazia (1992-1993) Chechênia (1994-1996; 1999-2009), Tajiquistão (1992-1997), Daguestão (1999), Geórgia (1991-1992, 2008), Norte do Cáucaso (2009-2017), Ucrânia (desde 2014), Síria (desde 2015), República Centro Africana (desde 2018) e Mali (desde 2021). Ao mortes estimadas nestes episódios, oscilam entre 430 mil e 500 mil pessoas ao longo de trinta anos. Isso é a metade das mortes provocadas pelas forças armadas estadunidenses desde 2001.

Dos demais rivais estratégicos dos EUA, a China não teve envolvimentos militares diretos desde o final dos anos 1970. A Coreia do Norte não provocou nenhum conflito anos 2000, ainda que suas tropas tenham apoiado algum lado em terceiros conflitos de baixo impacto. E o Irã, com exceção da guerra contra o Iraque (1980-1988), onde cem mil civis e quase um milhão de soldados morreram, envolveu-se apenas em disputas no seu entorno regional, especialmente através do apoio a grupos terroristas em guerras não causadas diretamente por sua ação. Neste caso, não chegaram a 2 mil as mortes associadas à ação de suas forças armadas. Isso equivale a menos de 1/5 dos óbitos verificados no primeiro mês do mais recente conflito entre Israel e o Hamas: 1,3 mil israelenses e 10 mil palestinos.

Sob a Sombra dos Riscos Geopolíticos

Em termos econômicos, as preocupações de curto e médio prazo se direcionam para os potenciais efeitos da crise no Oriente Médio sobre os mercados de energia e alimentos. Os riscos geopolíticos projetam suas sombras sobre uma economia global em um momento de recuperação, ainda precária, das cicatrizes deixadas pela pandemia da Covid-19. A guerra na Ucrânia e, agora, a intensificação dos conflitos na Faixa de Gaza, sinalizam para a perspectiva de ambientes de maior instabilidade. Em seu “Panorama do Mercado de Commodities”, publicado no final de outubro, o Banco Mundial constrói distintos cenários de evolução nos preços dos recursos naturais, em função dos eventuais desdobramentos do quadro atual. 

Há cinco décadas, a Guerra do Yom Kippur precipitou um ajuste estrutural na economia internacional, com a intensa alta no preço do petróleo e seus derivados, e impactos sobre preços de alimentos e a inflação em geral. Depois deste evento e do choque de 1979, no Irã, o principal choque no mercado do petróleo e derivados resultou da recente guerra na Ucrânia. Verificou-se, no primeiro semestre de 2022, variação acumulada de +70% nos preços deste produto. Além dele, o gás natural na Europa, cujo preço médio decuplicou entre 2020 e 2022, os cereais (+ 50% de variação no trigo em 2022), os fertilizantes (+80%) e outros produtos primários (42% no índice geral de commodities do Banco Mundial no ano de 2022) foram particularmente afetados, com impactos adicionais nos índices gerais de preço. Em 2022, a inflação voltou à casa dos dois dígitos nas economias de alta renda, após quatro décadas de trégua.

Com a guerra em curso no Oriente Médio, os temores de novos choques são justificados. Cerca de um em cada dez habitantes do planeta se encontra em situação crônica de desnutrição e de insegurança alimentar. Entre 700 e 900 milhões de pessoas já sofrem com a fome e poderão se defrontar com desafios redobrados para garantir condições mínimas de subsistência. Em termos mais amplos, o Banco Mundial sugere que a economia global está muito melhor preparada para enfrentar um novo “choque do petróleo”. A diversificação das fontes de geração de energia e os ganhos de eficiência das novas estruturas produtivas fizeram com que se reduzissem para mais da metade a necessidade de petróleo para gerar o mesmo incremento de renda em comparação com a realidade dos anos 1970.

Durante o “primeiro choque do petróleo”, entre outubro de 1973 e março de 1974, o embargo (suspensão de exportações e redução na produção) realizado pelos países árabes exportadores de petróleo fez com que os preços desta commodity quadruplicassem. Por decorrência, em 1975, a renda per capita global apresentou seu primeiro declínio real (-2% a.a.) desde a Segunda Guerra Mundial. O mesmo se deu no início dos anos 1980, quando o segundo choque (Irã, 1979) ampliou as pressões inflacionárias e originou a alta de juros do FED (choque Volcker). A economia mundial experimentou nova contração do PIB por habitante (-1% a.a.).

Até aqui, nada neste sentido está no horizonte. As guerras de 2022 e 2023 não alteraram as projeções do Banco Mundial para 2024 e 2025, com a permanência de um quadro de preços moderados e com viés de baixa para o ano que vem. Para o último trimestre do corrente ano, espera-se uma média de US$ 90 por barril de petróleo, valor que atingiria US$ 81, em 2024, diante de um menor dinamismo econômico. Para 2024 e 2025, projeta-se variação negativa (-4,1% e -0,5%, respectivamente) para todas as commodities

Em um cenário alternativo “suave”, de agravamento na situação no Oriente Médio, em linha com exemplos como a guerra na Líbia, em 2011, a produção de petróleo poderia cair entre 500 mil e 2 milhões de barris/dia, gerando oscilações altistas nos preços entre US$ 3 e US$ 13. Com isso, o petróleo poderia voltar para um patamar de US$ 100/barril. Em um cenário intermediário, com queda na produção em até 5 milhões de barris/dia, os preços poderiam subir 35% e atingir mais de US$ 120. 

Já no pior cenário, com contração na oferta de até 8 milhões de barris por dia, os preços poderiam variar em +75%, com o barril se aproximando de US$ 160. Para se colocar em perspectiva, em termos nominais, o maior valor dos últimos 30 anos (Crude Oil WTI, USD/Bbl) se deu em junho de 2008, com US$ 140. Com a guerra na Ucrânia, este preço variou +67% entre dezembro de 2021 (US$ 67) e junho de 2022 (US$ 112).

Em termos mais amplos, FMI, Banco Mundial e os grandes bancos de investimento projetam que renda global seguirá crescendo ao redor de 3% a.a., com inflação em trajetória de acomodação, juros mais altos e um estoque problemático de dívidas.

Guerra e Transformações da Ordem Política

Tais projeções não tornam menos inquietantes os impactos dos sucessivos conflitos e choques – como a crise financeira global (2007-2009) e a pandemia da Covid-19 –, que tanto ameaçam a incipiente recuperação da economia real, quanto criam vetores de novos futuros marcados pela instabilidade, o nacionalismo exacerbado, a ruptura potencial das complexas interconexões produtivas que caracterizaram a globalização desde os anos 1990, e o acirramento dos “choques” entre civilizações. A potência hegemônica sente-se cada vez mais ameaçada pela emergência de novos poderes que a ela não se submetem. Sua reação é a principal fonte de instabilidade política, securitária e econômica. O rastro de mortes associadas aos esforços de “terraformar” o mundo à sua imagem e semelhança é uma digital que marca a origem dos males que atormentam a contemporaneidade. 

Não será uma surpresa se, nos próximos anos, tivermos uma aceleração no movimento de reorganização dos circuitos financeiros e comerciais globais, dando lustro a uma nova realidade econômica. Este cenário já está presente na mente de financistas, empresários e líderes governamentais. Como sugeriu Gilpin no seu “War and Change in World Politics”, as guerras podem precipitar mudanças estruturais na ordem política internacional. Resta saber se os conflitos em cursos, especialmente no caso de uma escalada em termos de envolvimentos, fronts e violência, contribuirão para manter ou alterar profundamente o status quo.

(*) Docentes do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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