Opinião
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5 de setembro de 2023
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07:15

O acontecimento: do aborto da palavra à coragem de ir até o fim (Coluna da APPOA)

Annie Ernaux (Foto: Catherine Hélie/Gallimard/Divulg ção)
Annie Ernaux (Foto: Catherine Hélie/Gallimard/Divulg ção)

Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr (*)

“Uma noite sonhei que segurava um livro que havia escrito sobre o meu aborto, mas não se podia encontrá-lo em nenhuma livraria e ele não era mencionado em nenhum catálogo. Na parte inferior da capa, em letras grandes, constava ESGOTADO. Não sabia se esse sonho significava que eu deveria escrever este livro ou seria inútil fazê-lo. Com este relato, foi o tempo que se pôs em movimento e que me conduz apesar de mim. Sei agora que estou tão decidida de ir até o fim, aconteça o que acontecer, como estava quando, aos 23 anos, rasguei o atestado de gravidez” [1]

Você já leu um livro que interroga os limites do suportável? Durante e depois de ler O acontecimento, fiquei com essa sensação. Annie Ernaux, ao retomar um dos momentos chaves de sua vida, sacode o leitor diante da determinação de uma personagem de ir até o fim no seu propósito. Nessa odisseia de uma mulher de 23 anos, sozinha, desamparada, com medo, impossibilitada de falar, mas, ao mesmo tempo, com uma coragem inabalável, mergulhamos em uma narrativa que busca refazer o caminho de sua história, tocando no real através da escrita. 

Publicado em 2000, escrito quase quatro décadas depois do acontecido, o livro reescreve a história de uma jovem universitária, estudante de letras, aterrorizada pela descoberta de uma gravidez inesperada. Logo após saber que está grávida, “os meses seguiram banhados por uma luz embaçada e pálida”. Incrédula, ela se via andando na rua sem parar. 

Ao mesmo tempo em que Ernaux percebe a sua carreira acadêmica ameaçada, ela também não pode contar com o apoio do namorado e se sente tomada por uma vergonha absoluta que a impossibilita de contar aos pais sobre a gravidez. A autora observa o quanto, na época, o medo de ficar grávida fora do casamento representava para a família a ruína do futuro, pois “a filha grávida era vista da mesma forma que o alcoólatra, o emblema. Eu estava ferrada, e o que crescia em mim era, de certa maneira, o fracasso social” (p.21). Esses são alguns dos fatores que a deixou determinada a fazer um aborto clandestino com uma “fazedora de anjos” em janeiro de 1964, em Paris. 

Como ela mesma disse em entrevista [2] concedida logo após a publicação, essa foi uma experiência limite que quase lhe custou a própria vida, o que lhe possibilitou outra visão do mundo. Ao narrar detalhadamente o seu próprio aborto, Ernaux, com sua escrita transgressora, além de compartilhar o sofrimento e a solidão desse acontecimento que marcou a sua vida, chama a atenção para os mecanismos de controle e de dominação que buscam cercear a liberdade das mulheres. Nesse sentido, ao escrever esse momento tortuoso, ela também fala do drama de milhares de mulheres que foram e ainda são julgadas quando decidem abortar. Como ela menciona, na entrevista, essa memória nunca a deixou, representando na sua vida, assim como a de muitas mulheres, seja antes ou depois da lei de Veil de 1975, um acontecimento verdadeiro. 

Cabe ressaltar que a história acontece na França da década de 60, época em que abortar não significava apenas um grande problema, era, na verdade, considerado um crime. Também por isso, essa leitura é importante pois é uma espécie de testemunho do horror que muitas mulheres enfrentaram para interromper a gestação, submetidas a condições extremamente difíceis, sobretudo as de classes menos favorecidas.

Feminista engajada, Ernaux vai mergulhar fundo nas entranhas daquilo que a hipocrisia francesa recusava enxergar, pois os números indicavam que havia em média de 300 mil a um milhão de abortos clandestinos por ano no país. Ou seja, mais do que um dilema pessoal, tratava-se de uma questão de saúde pública, pois além de milhares de mulheres ficarem gravemente feridas, muitas, infelizmente, iam a óbito. 

Observar o contexto histórico é fundamental nessa questão. Em vários momentos a autora descreve a falta de conhecimento e a carência de informações sobre o tema, especialmente do tabu que envolvia o assunto. Na década de 60, haja vista o machismo reinante e as tentativas de controle do corpo da mulher, estava abortada a palavra para falar sobre o aborto. Como diz Ernaux, ao falar da sua consulta ao médico: “não pronunciamos nenhuma vez a palavra aborto, nem ele nem eu. Era uma coisa que não tinha lugar na linguagem” (p.36). O assunto sequer podia ser debatido e os poucos livros que tangenciavam o tema eram declaradamente contra a interrupção da gravidez. A “espessura do silêncio” em torno da questão era como se a palavra ‘aborto’ não tivesse lugar de enunciação, jogando as mulheres num misto de não saber o que poderia acontecer com elas, mas, ao mesmo tempo, culpando-as pela interrupção da gestação. Mais uma vez, a máxima freudiana, de que cada caso deve ser lido na sua singularidade, faz-se imprescindível. A complexidade e o paradoxo do aborto em questão, além de relançar a ideia de renascer, coloca em ato outras dimensões da morte e do morrer. “Tenho a impressão de que aquela mulher em plena atividade entre minhas pernas, que introduz o espéculo, me faz nascer. Eu matei minha mãe em mim naquele momento”. (p.49). 

Abro, aqui, um parêntese para pensar a questão da responsabilidade coletiva em relação ao tema naquela época.  Foi preciso esperar dois fatos históricos que contribuíram para a emancipação da mulher, maio de 68 na França, e fundamentalmente, a determinação implacável de Simone Veil [3], especialmente, quando ocupou o cargo de ministra da saúde. No discurso de 26 de novembro de 1974, numa época em que ainda, 50 por cento dos franceses achavam que o aborto era um crime, ela teve a coragem de enfrentar o parlamento francês, composto por esmagadora maioria de homens, convocando-os a escutar aquilo que recusavam reconhecer.

Veil, feminista importante para a cultura e para os direitos das mulheres, após já ter sofrido horrores como sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz-Birkenau, na segunda grande guerra, foi acusada, brutalmente, no discurso da sua defesa pela legalização do aborto. O homem que a insultava, contrário a legalização, chegou ao ponto de dizer que ela seria proponente de um nazismo legalizado, pois seu projeto jogaria as crianças num crematório. A crueldade perversa desse cidadão é apenas umas das inúmeras evidências do que o machismo é capaz de fazer para tentar legislar sobre o corpo das mulheres. Felizmente, mulheres como Veil e Ernaux não cederam de lutar pelo direito de decidir sobre o próprio corpo e o aborto virou um direito naquele país. Pode-se dizer que aprendemos com elas o quanto certas causas precisam ser levadas até o fim.  Ambas, fizeram isso.

Após escrever O acontecimento, Ernaux [4] ficou com a lembrança de ter ido longe, atingindo lugares que geralmente não adentramos, chegando inclusive a comparar essa escrita com a travessia, determinada, dos emigrantes. É possível reconhecer o seu orgulho de não ter recuado face a vergonha e o julgamento dos outros. Ousaria dizer que o leitor, de alguma forma, parece sentir algo disso, pois a autora transpõe o relato da experiência, jogando-nos na cena como se, de repente, nos tornássemos cúmplices de uma violência indizível. Porém, ao mesmo tempo, interrogando-nos tanto sobre a nossa responsabilidade diante do machismo que nos habita quanto a necessidade de insistir na defesa da dignidade humana. 

Ernaux, em outra entrevista [5] concedida, menciona que durante a escrita desse livro retornava o pensamento: “eu queria ir até o fim”. Inclusive, no próprio livro, ela fala desse processo de escrita, pois no começo não tinha certeza se levaria esse projeto adiante, como se apenas estivesse testando o seu desejo de escrever sobre isso. Se ceder ao desejo de escrever sobre a radicalidade do que ela viveu parecia-lhe assustador, morrer sem falar desse acontecimento era, ainda, mais insuportável. Desse modo, “se havia uma culpa, era essa” (p.16). 

Para nossa alegria, Ernaux resolveu o impasse e optou por movimentar essa escrita e recuperar o acontecimento, “sei agora que estou tão decidida a ir até o fim, aconteça o que acontecer, como estava quando, aos 23 anos, rasguei o atestado de gravidez” (p.16). 

Ciente das resistências a serem enfrentadas, a autora, na citação a seguir, situa o direito de sua escrita e a responsabilidade coletiva de não se acomodar diante das tentativas de dominação masculina. Cito-a: 

“pode ser que um texto como este provoque irritação, ou repulsa, ou seja considerado de mau gosto. Ter vivido uma coisa, qualquer que seja, dá o direito imprescritível de escrevê-la. Não existe verdade inferior. E, se eu não relatar essa experiência até o fim, estarei contribuindo para obscurecer a realidade das mulheres e me acomodando do lado da dominação masculina do mundo” (p.35).

Antes de suspender esse texto, faz-se necessário uma ressalva. Teria um homem condições de discutir uma escrita que aborda com tamanha radicalidade o corpo, as angústias e os direitos da mulher? A resposta é simples: não. A própria Ernaux já respondeu essa questão, “fala-se mal do corpo da mulher. Há uma grande ignorância do corpo da mulher pela parte dos homens”. No entanto, em diferentes tempos, a leitura de O acontecimento, assim como, a presente escrita, se impuseram para mim tanto como uma forma de lidar com a minha própria ignorância, quanto como reconhecimento da importância desse livro para minha clínica. 

Portanto, recomendo O acontecimento, especialmente, para os homens. Na aposta de que alguns tenham a coragem de ir até o fim. 

Notas 

[1] Ernaux. A. O acontecimento: Editora Fósforo, 2022, p.16.

[2] Ver L’Événement d’Annie Ernaux. Entretien. Rencontre avec Annie Ernaux, à l’occasion de la parution de L’Événement en mars 2000

[3] Ver documentário YouTube, Simone Veil. L’instinct de vie – Un jour, un destin – Documentaire histoire. 

[4] Ver entrevista em France Culture – Annie Ernaux et Audrey Diwan font l’événement

[5] Ver France Culture – Annie Ernaux: écrire l’avortement.

(*) Psicanalista, membro da APPOA e Instituto APPOA, doutor em Psicologia Social e Institucional – UFRGS.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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