Opinião
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8 de agosto de 2023
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07:05

A bagagem que carregamos (Coluna da APPOA)

"Compartilhamos a nossa mitologia pessoal como uma forma de contar o que de mais precioso nós temos". (Imagem: Pixabay)

Luciano Mattuella (*)

Nos últimos tempos, tenho tido a sorte de rever amigos antigos, pessoas que com quem dividi momentos importantes da minha vida e que, por circunstâncias da vida, estão agora morando em outras cidades, ou mesmo em outros países.

Talvez por conta da passagem dos meus quarenta anos, tenho me visto tomado por um sentimento com relação ao qual eu me supunha imune: tenho me percebido nostálgico. Pode ser também por estar em um momento de vida em que tudo está tão corrido, um período em que parece que a imagem que tenho de mim mesmo se desfaz na rotina dos dias. Aliás, esta tem sido uma percepção de muitos conhecidos na minha volta: estamos tão atarefados, tão sobrecarregados, que acabamos nos distanciando de hábitos e interesses que tanto nos fizeram ser quem somos.

Tenho lido muito menos do que eu gostaria, sempre adiando para um futuro próximo o momento em que poderei novamente estar a sós com os livros. Justo eu, que sempre me entendi como um leitor voraz, tenho tido dificuldade de chegar ao final do dia e ler aquelas vinte ou trinta páginas que eu lia antes de dormir em outras épocas.

Os convites para aniversários e celebrações concorrem com os compromissos de trabalho aceitos há muito tempo, restando esse misto de culpa e de pesar quando tenho que dizer a algum amigo que “puxa, não vai dar, eu vou estar viajando neste dia”. 

São tempos em que a vida parece andar na pista ao lado daquela em que estou dirigindo. Fico na torcida de que ela emparelhe comigo na estrada e que eu possa dar uma olhada quem está dentro daquele carro, na expectativa de ter um fugaz vislumbre de quem eu sou.

Rever amigos antigos, mas dos quais nunca me distanciei completamente, é uma forma de desacelerar um pouco, de ter novamente devolvida pra mim a minha imagem.

Sei bem que a analogia com a viagem é bastante clichê, mas também tenho me visto rotineiramente repetindo os lugares-comuns. Com o passar dos tempos, me pego cada vez mais surpreso com o quanto tal ator ou tal cantor envelheceu, como se o os anos só se acumulassem para os outros. Tenho ido a shows de artistas que ouço desde a infância, com o receio de que logo mais eles não estarão mais aí – perdi a oportunidade, por exemplo, de ver Gal Costa e Rita Lee ao vivo.

Mas rever amigos tem feito eu me sentir jovem.

Como psicanalista, sei que muito do que somos se constitui na infância, momento da viagem em que estamos na carona, em que outras pessoas dirigem os nossos rumos. É curioso, e pode até parecer um tanto assustador saber que nas primeiras estradas que desbravamos nós não estamos no controle, não somos nós guiando o carro.

Por isso mesmo, não podemos ignorar o quanto a adolescência e os primeiros anos da vida adulta são cruciais nesta viagem. 

É na juventude que nós tomamos o volante pela primeira vez, ainda que muitas vezes sem saber dirigir muito bem. E, muitas vezes, também não temos bem clara a direção a seguir. 

Chegamos à juventude com todos aqueles quilômetros atravessados na carona e com um mapa mais ou menos detalhado do destino ao qual deveríamos chegar. São instruções desenhadas pela nossa família, coordenadas de um destino que talvez diga muito da paisagem que os nossos próximos apreciam, mas que provavelmente não sejam os caminhos que nós mesmos gostaríamos de percorrer.

Por sorte, quando tomamos a direção, estamos acompanhados de outros motoristas tão perdidos como nós. São estas pessoas que vão nos ajudando a traçar outras rotas, a construir um itinerário que faça mais sentido – o que, talvez, nos distancie cada vez mais do ponto de partida do qual somos filhos.

É nesta viagem compartilhada com os amigos da juventude que nós vamos acumulando histórias, causos e anedotas que vão dando forma a uma espécie de mitologia íntima. Quando sentamos novamente com estas pessoas em uma mesa de bar, fazemos questão de contar uma e outra vez estas narrativas, uma forma de nos certificarmos que os nossos mitos ainda estão aí, tanto dentro de nós como neste espaço invisível que, ainda que à distância, seguimos compartilhando.

Não raro, estas são as narrativas que contamos para os nossos amores e nossos novos amigos. Compartilhamos a nossa mitologia pessoal como uma forma de contar o que de mais precioso nós temos, como uma confissão dos deuses íntimos aos quais somos devotos.

Se a infância nos resta como o marco zero da viagem, a juventude é a bagagem que levaremos conosco até o destino final. Quando nos sentimos um tanto alheios a nós mesmos, preocupados demais por não conseguirmos apreciar a viagem, é esta bagagem que reviramos para sabermos que ainda estamos na direção.

Encontramos um pouco desta bagagem em cada amigo que fizemos, o que também é uma forma de amenizarmos as agruras de uma vida muito corrida: saber que uma parte de nós ainda existe em nossos amigos é reconfortante.

É o que permite, com sorte, pararmos em algum posto de beira de estrada para contarmos como tem sido a viagem até então.

(*) Luciano Mattuella é psicanalista, membro da APPOA.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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