Opinião
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5 de julho de 2023
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16:35

Reler Dyonélio Machado hoje: sobre a reedição de ‘Fada’ (por Jonas Dornelles)

Dyonelio Machado (Acervo Ucha/ Delfos – Espaço de Documentação e Memória Cultural)
Dyonelio Machado (Acervo Ucha/ Delfos – Espaço de Documentação e Memória Cultural)

Jonas Dornelles (*)

A reedição de Fada em 2021, pela editora Zouk, é o episódio mais recente de um longo processo de reabilitação da figura de Dyonélio Machado junto ao público gaúcho e brasileiro. Perseguido de maneira abominável pela política de Flores da Cunha e Getúlio Vargas, o premiado autor de Os Ratos confrontou-se com a inviabilidade de publicação para seus escritos nos anos 1950 e 1960, chegando a ficar duas décadas sem publicar um dos vários originais que compartilhava apenas com familiares e amigos.

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São vinte anos que separam as publicações de Passos Perdidos (1946) de Deuses Econômicos (1966), tempo no qual Dyonélio não publicaria um livro sequer. Seu retorno à esfera pública ocorrerá curiosamente com o retorno da ditadura militar em 1964. Com o apoio de jornalistas e defensores no campo literário, uma “redescoberta” para o escritor vai sendo lentamente fermentada, até que em meados da década de 1970, Dyonélio Machado será amplamente celebrado em nosso Estado, como grande escritor que sempre foi. 

Se tornará imortal em nossa Academia Riograndense de Letras, quando fará um importante discurso de posse em que lembra de sua adolescência (nos anos 1910!) como admirador do simbolista gaúcho, o poeta Eduardo Guimarães. Desde seu falecimento, em 1985 até os dias de hoje, o escritor vai lentamente reconquistando leitores e a crítica, que vem então reescrevendo sua história. Fundamental nesse processo foi o centenário do escritor em 1995, e mais recentemente a primeira edição de Proscritos (2014), a reedição de Um pobre homem (2017), resultados do dedicado trabalho do pesquisador Camilo Raabe, que também atuou nessa cuidadosa reedição crítica de Fada (2021). Momentos, estes, que podem ser definidos como uma nova etapa da recepção dyoneliana.

Se analisamos por certo ângulo contemporâneo, é um livro atualíssimo: não estamos em tempos de “jovens místicos”, que tapam o umbigo com um durex ritualístico, para protegê-lo de influxos energéticos malignos? Bem, as personagens de Fada na primeira parte do livro são jovens místicos. Acreditam que estão sob a influência de uma força anímica vinda de um curioso cerro, parecido com o Jarau da lenda, que existe na região próxima da fazenda familiar da jovem Jafalda. 

Uma paixão, que não admitem que sentem, se alimenta como que “escrita nas estrelas”, a realização de um plano maior, um destino, advindo da misteriosa montanha que enfeitiça ambos. Fadas e cavaleiros da Távola Redonda vêm ao socorro de sua fantasia, para sustentar os fantasmas de sua paixão e organizar a luta final contra o interesse patriarcal do pai da moça, que está resolvido a casá-la com seu sócio e vizinho de fazenda, um promissor especulador do agronegócio, que hoje chamaríamos de “agroboy”. Drama de amor que se atualiza, de valores quase que medievais, aos tempos de hoje. 

Mas reler Dyonélio não é apenas atravessar o livro em busca de seu enredo, o drama de classe do casal de jovens. Quem leu, sabe: o prazer da leitura de um livro como os Os Ratos, não se encontra apenas em relembrar que Naziazeno um dia saiu de sua casa,  da periferia da cidade até o centro de Porto Alegre, vagando pelos arredores do Mercado Público e do Cais do Porto, procurando um café para escorar sua fome e uma certa dinheiro para saldar sua dívida com o leiteiro. A riqueza da escritura de Dyonélio está no estilo com que conta a história, sua maneira irônica e intertextual, seu realismo psicológico e posição crítica, que encontra pequenas iluminações e verdades no mais banal dos acontecimentos.

Em tempos de fake-news e negacionismo, nos parece justo que voltemos mais uma vez para a literatura do “Doutor” Dyonélio Machado, que chegou se tornar diretor do Hospital Psiquiátrico São Pedro (antigamente chamado Hospício São Pedro). Pois seguindo o preceito de Giorgio Agamben, contemporâneo é aquele justamente que registra indignado o que há de mais doentio e atrasado, no tempo presente. Sejamos contemporâneos de Dyonélio, relendo Fada em tempos de jovens místicos, agroboys e terraplanismos, que assim como outros tantos anacronismos, infelizmente voltam bastante atuais em nosso tempo presente.

 “Esse texto é o terceiro de uma série três, que serão publicados como parte da campanha Salve Dyonélio Machado, que busca assegurar o inventariamento da casa, assim como evitar a demolição da casa onde o escritor morou por décadas no bairro Petrópolis. Acesse @salvedyonelio (Instagram) para mais informações e materiais de divulgação.”

(*) Doutorando em Teoria da Literatura pela PUCRS e pesquisador de vida e obra de Dyonélio Machado. Responsável pela página no Instagram Salve Dyonélio Machado (@salvedyonelio), que visa preservar e ressignificar a casa do escritor gaúcho no bairro Petrópolis. Como poeta, publicou recentemente o livro Sinais de Fumaça (2022, Editora Bestiário). Email: [email protected].

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