Opinião
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2 de julho de 2023
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10:34

Os 80 anos de O Louco do Cati e sua atualidade para o Brasil de hoje (por Jonas Dornelles)

Reprodução
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Jonas Dornelles (*)

Lançado em 1942 pela Editora da Livraria do Globo, O Louco do Cati foi o primeiro romance de Dyonélio Machado publicado depois do premiado Os Ratos, e tendo-se passado sete anos desde 1935, havia muita expectativa a respeito. Esperava-se um novo lançamento do escritor que não só havia sido um dos introdutores da psicanálise no país (com sua tradução de Elementos de Psicanálise de Eduardo Weiss em 1934), como também havia sido alçado a importante referência no campo das lutas sociais de esquerda, pois ficara dois anos detido como preso político (1935-1937), quase em simultâneo ao lançamento de Os Ratos.

Algumas reportagens da época do lançamento, na Revista do Globo, atestam essa expectativa. Lemos na orelha da primeira edição de O Louco do Cati, “Agora, decorridos seis anos de silêncio e de absoluto ostracismo, Dyonélio Machado reaparece com ‘O Louco do Cati’, no qual se afirmam mais, suas extraordinárias qualidades de romancista”. Note-se que já no seu segundo livro, se falava de seu ostracismo, ignorando-se as condições materiais de sua vida: passara os últimos anos preso, depois buscando anistia e então se reinserindo profissionalmente em Porto Alegre.

Logo após sua publicação, o livro é reconhecido como uma obra importante, algo misteriosa e potente, mas que desafia os juízos críticos. Como interpretar esse personagem silencioso, que vaga pelo Brasil do início da ditadura do Estado Novo, se desespera com possíveis retornos do quartel militar do Cati, acaba preso injustamente, e que quando solto, vai recuperando sua saúde de estadia em estadia, até que acaba para sua infelicidade, retornando a região gaúcha que faz fronteira com o Uruguai, onde se situa o famigerado quartel?

O quartel do Cati, criado em 1895 e mantido até 1908, ficou conhecido na fronteira por suas práticas terroristas de repressão, com invasões de casas e execuções de opositores com degolas públicas. Representava a imposição do poder do Partido Republicano Riograndense contra adversários maragatos e as populações fronteiriças do Uruguai e Argentina, e apresentava-se na época como um quartel com técnicas eficientes e instalações modernas. 

É por isso que, relacionando vida e obra, o Louco do Cati parece ser uma espécie de reflexo de seu autor. Foi preciso a ditadura militar de 1964, para que talvez os leitores revivessem integralmente a experiência violenta do autoritarismo brasileiro, entendo que a importância do livro se amplia: O Louco do Cati é uma alegoria das ditaduras autoritárias no país, transcendendo o contexto anterior ao Estado Novo, cujo paralelismo está presente na superfície textual do livro.

A mensagem da personagem do Louco, de que o “Cati”, o quartel está de volta, não seria então apenas alegoria do presente histórico da personagem, o Estado Novo, mas também para outras experiências autoritárias como o regime militar de 1964. Mas podemos, no agora, ressignificar a atualidade do livro, testemunhas que somos (outra vez) do retorno do autoritarismo brasileiro ao poder. A novidade infeliz é que agora estamos vendo um claro retorno do Cati em tempos democráticos.

O interessante é que agora possuímos uma nova compreensão do livro. Todas leituras até então concebiam a protagonista como que atormentada, uma vítima do terror militar. O que é plausível, considerando sua representação como uma criança ou cão ferido ao longo do livro. Mas relacionando a obra com sua tese de doutorado de 1933, Uma definição biológica do crime, encontramos algo intrigante: em certo trecho da tese, os sintomas de um homicida são descritos de maneira muito semelhante ao Louco, pois ambos comeriam lixo como que para reviver e ao mesmo apagar a memória traumática. A diferença principal, o acréscimo, é que o trauma do protagonista não seria a repressão, mas a realização de um assassinato. Mas como, o Louco do Cati, um homicida?

Em um fragmento brevíssimo da obra, a personagem lembra-se de afiar uma faca, cena que faria parte de sua rotina passada. Junte-se a isso as diversas guerras civis e degolas que aconteceram na fronteira, assim como a memória do “jovem Louco” sentindo uma espécie de fascinação pelos militares do Cati, e em outro momento despedindo-se de sua mãe enquanto vai embora em uma diligência militar (talvez não para o quartel do Cati, mas para um dos tantos grupos combatentes daquela época).

Com isso, surgiu uma nova leitura de O Louco do Cati, pouco explorada até aqui: a personagem teria sido uma espécie de criminoso político, que acaba esquecido ao final das disputas a que serviu (a guerra civil de 1923, seria um dos potenciais palcos para um falhado assassinato político). Não é a toa que no início da obra, a personagem se veja novamente manobrada por um suspeito militante comunista. O drama da personagem chamada de Louco, seria justamente a alienação, não entender o contexto ideológico e político em que se vê envolvido. Assim como Naziazeno de Os Ratos, ambas personagens que Dyonélio Machado afirmou estarem perdidas entre de esquerda ou direita, já que não entendem e nem se decidem a respeito [1].

É assim que O Louco do Cati possui uma atualidade ainda maior, para além da denúncia do retorno cíclico do terror militar típica do autoritarismo brasileiro (mesmo durante em um período “democrático”). Lendo a obra nessa chave de leitura irônica, na qual a personagem é ambiguamente uma vítima e um criminoso, temos a tragédia das mentes fracas que acabam por se levar em ondas populistas, e que cometem crime políticos sem compreender bem a qual causa servem. Se lêssemos a obra assim, já não veríamos alguns Loucos no tempo presente, construindo futuros silêncios traumáticos, ao cometerem crimes políticos que nem mesmo admitem para si mesmos que são responsáveis? 

Ler também: A destruição da casa de Dyionélio Machado e a política da amnésia cultural

“ Esse texto é o segundo de uma série três, que serão publicados como parte da campanha Salve Dyonélio Machado, que busca assegurar o inventariamento da casa, assim como evitar a demolição da casa onde o escritor morou por décadas no bairro Petrópolis. Acesse @salvedyonelio (Instagram) para mais informações e materiais de divulgação.”

Nota

[1] Para um mergulho na ironia dyoneliana presente nesse livro, ver As ironias de Dyonélio em O Louco do Cati, dissertação ganhadora do prêmio da Academia Riograndense de Letras em 2020 (DORNELLES, 2019, PUCRS).

(*) Doutorando em Teoria da Literatura pela PUCRS e pesquisador de vida e obra de Dyonélio Machado. Responsável pela página no Instagram Salve Dyonélio Machado (@salvedyonelio), que visa preservar e ressignificar a casa do escritor gaúcho no bairro Petrópolis. Como poeta, publicou recentemente o livro Sinais de Fumaça (2022, Editora Bestiário). Email: [email protected].

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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