Opinião
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11 de julho de 2023
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07:16

A ‘ditadura escrachada’ do capital e do mercado que ele domina (por Jacques Alfonsin)

Foto: Tânia Rego/Agência Brasil
Foto: Tânia Rego/Agência Brasil

Jacques Távora Alfonsin (*)

 Em artigo publicado na Zero Hora de 5 deste julho, sob o título de “A ditadura escrachada”, a presidente do Instituto de Estudos empresariais faz algumas afirmações que, por respeito a história e a realidade atual do Brasil, merecem questionamento.  A primeira é a de que a paz somente será possível, diferentemente do que cantava John Lennon, pelo respeito devido à propriedade privada e a à liberdade. A segunda, de que serviria de exemplo contrário disso, os países que são comunistas. A terceira, a de que outro modelo de economia e política que relativize a democracia e o Estado de direito constitui-se em verdadeiro deboche.

  Vale a pena, então, colocar-se a prova cada uma dessas afirmações. A primeira, no que se refere a paz, esquece um dado histórico importante. Desde o Direito romano, séculos antes de Cristo, já se tinha como certo que “Opus justiciae pax”, a obra da justiça é a paz. Ora, a justiça nunca foi prioridade para o modelo de economia e política baseado na propriedade e na liberdade do sistema capitalista que está “escrachado” na opinião da residente do IEE. Até pelo contrário, no que concerne às garantias de paz, os países mais capitalistas do mundo, primeiro a Inglaterra, depois os Estados Unidos, foram e o último ainda é dos maiores promotores de guerra no mundo inteiro.

  Se a Rússia ainda é comunista (?) e hoje está em guerra com a Ucrânia, isso não serve de exemplo para confirmar a segunda afirmação da colunista de ZH, pois não absolve a extensa “folha corrida” das intervenções dos Estados Unidos em muitos países e a manutenção de tropas suas em outros, do modo como a presidente do IEE parece ignorar, quando atribui somente aos comunistas a perturbação da paz. É uma das características históricas do sistema capitalista ser colonialista e só abandonar esse tipo de domínio fora de suas fronteiras à custa de muita dor e sangue.  O mesmo vale para a terceira afirmação do artigo da presidente, sobre Estado de direito e democracia. Se só o comunismo não respeita e não garante um e outra, o passado de quase toda a América Latina, o Brasil inclusive, oferece uma trágica prova de contestação. O golpe militar de 1964, aqui, como em outros países dessa mesma parte do continente, (o Chile de Pinochet como um dos mais expressivos exemplos)  foi apoiado pelos Estados Unidos, e o povo brasileiro viveu numa “democracia”, – pelo jeito, a do modelo preferido pela articulista –  que durante mais de duas décadas, com a cumplicidade da elite do sistema capitalista brasileiro que aderiu a toda a barbárie seguinte, aqui não excluiu torturas e mortes, provadas posteriormente, entre outras fontes idôneas, pelo livro “Tortura Nunca mais”, prefaciado por Dom Paulo Evaristo Arns e pelas Comissões da Verdade.

  Afirmar, então, que um sistema como esse garante “viver em um mundo melhor e proporcionar melhores condições para a nossa família”, como diz a colunista, isso sim parece deboche. Colocada dentro do seu verdadeiro contexto, a relatividade da democracia e do Estado de direito, que lhe provoca tanto escândalo, não é só ideológica não. Se alguém quiser um testemunho histórico disso, até a Wikipedia parece não ter conseguido esgotar o número das presenças indevidas dos Estados Unidos em outras regiões do globo, desrespeitando as soberanias democráticas locais, seja pelas armas, seja pelas ameaças das quais aquele país se serve para garantir seus interesses econômicos capitalistas. Muito menos que relativa, a “democracia” e o “Estado de Direito” do sistema capitalista que ele impõe então onde e quando ele quer, são pura e “escrachada ditadura”.

   Em todo o lugar e tempo, pois, que em lugar da justiça, garanta-se preferência prioritária, de fato e de direito, para a propriedade e a liberdade antes de tudo o mais, as estatísticas dos efeitos disso não sangram, mas as vítimas que mal sobrevivem sob os históricos e repetidos abusos de uma e outra em quase toda a metade sul do planeta, são de extrema pobreza e miséria, sangram de doença, fome e morte. Aí, a liberdade de acumular dinheiro, com poder de dominar pessoas e coisas, explora, aliena ou terceiriza as primeiras para privatizar todas as segundas, especialmente terra, condição de vida para toda a humanidade, com tudo o que nessa está implicado, inclusive comida, teto e trabalho como tanto insiste o Papa Francisco.

   A volta vergonhosa do Brasil ao mapa da fome, por exemplo, nos últimos quatro anos do seu des-governo “anti-comunista” (!) e capitalista, atesta esse fato de modo inquestionável.  E é de admirar que, no site do IEE, que, no elenco dos “valores” que o inspiram, consta exatamente a causa disso: a responsabilidade lá inscrita como valor é individual, e não social, o suficiente para ali se omitir então, não com surpresa, a justiça e a responsabilidade social. Por isso, quando a sua presidente quer estender o seu modelo de convivência pacífica para todo o mundo, deveria ter ouvido uma profecia de Celso Furtado, feita ainda em 1996, que hoje está se cumprindo de forma dramática:

  “O custo em termos de depredação do mundo físico, desse etilo de vida, é de tal forma elevado que toda a tentativa de generaliza-lo levaria inexoravelmente ao colapso de toda uma civilização, pondo em risco a sobrevivência da espécie humana. Temos assim a prova cabal de que o desenvolvimento econômico – a ideia de que os povos pobres podem algum dia desfrutar das formas de vida os atuais povos ricos – é simplesmente irrealizável. Sabemos agora de forma irrefutável que as periferias da economia nunca serão desenvolvidas, no sentido de similares às economias que formam o atual centro do sistema capitalista.[1]

  “Pondo em risco a sobrevivência da espécie humana.” Note-as a gravidade desse aviso para quem tem tanto poder econômico de transformar a realidade para o bem ou para o ml. É do site do IEE, também, a informação de que os seus associados e investidores “possuem receitas maiores que 330 bilhões de reais.   Representam receitas equivalentes a + de 65% do PIB do estado do Rio Grande do Sul e cerca de 5% do PIB do Brasil. Empregam + de 162.000 pessoas.”

 Comparando-se esses dados impressionantes com a sonegação fiscal de grandes empresas, no Brasil, aí reside uma constrangedora ironia e uma vergonhosa contradição do sistema defendido pela presidente do IEE. Com tanto dinheiro e poder é de se pressupor que nesse Instituto não tenha ninguém, mesmo devotando tanto respeito pela propriedade privada e pela liberdade, subtraia (aqui cabe um outro verbo) da propriedade pública, justamente o dinheiro que pertence a todo o povo, e é indispensável ao “bem comum”, que não aparece no referido site.

  A propósito, a UOL publicou dia 9 de novembro do ano passado, um levantamento da Fenafisco sobre os maiores sonegadores de impostos devidos aos Estados da Federação: “De acordo com o estudo, a dívida ativa no Balanço Patrimonial dos estados passou de R$ 682,2 bilhões em 2015 para R$ 987,75 bilhões em 2021, um aumento de 45%. A maior parte da dívida está concentrada em poucas empresas de grande porte, a maioria localizada na região Sudeste. As dívidas das empresas totalizam 11,35% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional. Em 11 estados analisados, a dívida ativa é maior do que a arrecadação anual com o recolhimento de impostos.” [2]{…} Os dez maiores devedores são: Refinaria de Petróleo de Manguinhos (R$ 7,7 bilhões), Ambev (R$ 6,3 bilhões), Telefônica – Vivo (4,9 bilhões), Sagra Produtos Farmacêuticos (R$ 4,1 bilhões), Drogavida Comercial de Drogas (R$ 3,9 bilhões), Tim Celular (3,5 bilhões), Cerpasa Cervejaria Paraense (R$ 3,3 bilhões), Companhia Brasileira de Distribuição (R$3,1 bilhões), Vale (R$ 2,7 bilhões) e Athos Farma Sudeste S.A (R$ 2,9 bilhões).”

 Quase um trilhão de reais subtraídos da população, como são as receitas tributárias (daí seu nome de “públicas”, comuns, de todas as pessoas), deveriam merecer o mesmo ou até respeito superior ao da propriedade privada, já que sustentam e buscam garantir as políticas públicas de implementação dos direitos humanos fundamentais sociais, justamente de quem mais necessita disso, como o povo pobre e, ou, miserável. Constitui, portanto, uma inaceitável contradição do sistema capitalista, pelos seus mais poderosos e endinheirados representantes, que tanto prezam a propriedade privada e a liberdade, desrespeitarem a propriedade púbica e, por isso, ameaçarem ou até eliminarem os meios de conquista da plena liberdade daquele povo ser garantida.

  Sobre essa e outras contradições do sistema defendido pela colunista da ZH, a autoridade de Thomas Piketty, ao sintetizar as profundas desigualdades atualmente existentes entre as rendas do capital e do trabalho não deixa por menos os seus péssimos efeitos, seja para o presente, seja para o futuro:

 “Essa desigualdade exprime uma contradição lógica fundamental. O empresário tende inevitavelmente a se transformar em rentista e a dominar cada vez mais aqueles que só possuem sua força de trabalho. Uma vez constituído, o capital se reproduz sozinho, mais rápido do que cresce a produção. O passado devora o futuro.” [3]

  Para que a gente não seja engolida por esse passado, também, cabe parafrasear a conclusão do artigo da presidente do IEE, quando ela afirma que “Se não existirem a propriedade privada e o livre mercado, viveremos em uma ditadura na qual o objetivo não será a paz, e sim suprir nossas necessidades fisiológicas básicas para não morrermos famintos.”

  Uma outra versão bem melhor do que ela diz parece mais razoável e menos ideológica: O Brasil somente se encontrará no caminho da paz, se não se submeter a um sistema de propriedade privada que desrespeita a sua função social, e um chamado livre mercado fechado para quem não tem dinheiro para acessá-lo; sem justiça e responsabilidade social,  viveremos presos a um  passado histórico de injustiça, sem chance de paz, sob um Estado  dominado por uma “escrachada ditadura” socioeconômica, que vem nos oprimindo há séculos e só conhece Estado de direito e democracia pelo que fingem ser, privatizados pelo capital. Urge organizarmos nossa resiliência contra essa barbárie. Coragem!

Notas

[1] O mito do desenvolvimento econômico. São Paulo: Paz e Terra, 1996, p. 88/9.

[2] Grifos nossos.

[3] O CAPITAL no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014, p. 555.

(*) Procurador aposentado do Estado do Rio Grande do Sul e membro fundador da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos e RENAP

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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