Opinião
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18 de março de 2023
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07:35

Pensando as fragilidades da democracia brasileira (por Céli Pinto)

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Céli Pinto (*)

O regime democrático no Brasil sofre historicamente de um raquitismo crônico, muito determinado pelo imenso fosso entre ricos e pobres que coloca o país entre os mais desiguais do mundo, apesar de ser uma das 20 mais ricas economias do planeta.

O exame da história do Brasil permite a hipótese de que as elites econômicas e políticas sempre cuidaram para que o regime democrático nunca abalasse os privilégios dos poucos que são ricos, que são brancos, que são homens, que se declaram religiosos, heterossexuais e defensores da família.

Estas são as elites que estão dentro das chamadas instituições democráticas e, quando se diz que a democracia está forte porque as instituições estão funcionando a contento, isto significa dizer que as elites, que povoam os cargos nestas instituições, estão interessadas em manter o regime. Quando o regime ameaça romper privilégios, mesmo que seja uma pequena redistribuição de renda, a dedicação ao regime democrático simplesmente se esvai.

Seria ingenuidade ou má intenção alguém defender que o Congresso Nacional, tal como está configurado, se preocupa em fortalecer a democracia. Por óbvio, se oporia com muita garra ao seu fechamento, ou a diminuição de seu poder. Mas, parafraseando Bourdieu, eles defendem as regras do campo porque dependem delas para sua própria sobrevivência. No caso presente, isto também envolve as regras não convencionais da direita tradicional ter poder e recursos financeiros, que atende pela alcunha de Centrão.

Sem a mesma desfaçatez, mas não muito distante do legislativo, o Supremo Tribunal Federal, quando a probabilidade de um novo governo Bolsonaro ameaçava sua própria independência como Suprema Corte, também se tornou ferrenho defensor da democracia. 

Não é possível esquecer que o Legislativo e o Judiciário, desde o juiz de 1ª instância até o STF, pisotearam os mais elementares princípios do ordenamento jurídico democrático do país, promovendo e dando guarida ao impeachment golpista sofrido pela Presidenta Dilma Rousseff e condenando Lula à la volonté, para impedir que ele se candidatasse à presidência da República em 2018. Temiam uma radicalização da democracia e a perda de alguns de seus inúmeros privilégios.

Talvez, parte do legislativo e do STF não tenha avaliado com precisão o estrago que causaria ao abrir as portas do país ao caos político e entregar aos eleitores um indivíduo de uma pequenez absoluta para, numa cruzada antipolítica, ganhar as eleições e levar o Brasil ao completo descalabro interno e à desmoralização internacional.

Tudo isto para dizer que o regime democrático no Brasil é frágil e a elite defensora de hoje pode, sem qualquer cerimônia, ser anfitriã de novas experiências protofascistas. 

A eleição de Luiz Inácio Lula da Silva dá ao país a oportunidade única de lastrear, aprofundar, como diria Boaventura, democratizar a democracia, mas isto não se fará num passe de mágica, só porque um presidente popular de centro-esquerda está no poder. 

O que fazer para que isto se concretize? Parece-me que, antes de tudo, é preciso descentralizar o poder, diversificar e ampliar as pessoas que tomam decisões.  A democracia, para se radicalizar, necessita encontrar novas formas de tomada de decisão. E, neste momento, isto está nas mãos do poder executivo, mais especificamente, no Palacio do Planalto.  Até agora foram muito tímidas as medidas neste sentido, a começar pela escolha de mulheres, de negros, negras e indígenas para os postos de ministros do governo. Há muito mais do que no desgoverno anterior, mas isto não é nenhuma qualidade. 

Nós cidadãos, cidadãs e principalmente aos movimentos sociais como MST, MTST e feministas, negros, ambientalistas, feministas negros, LGBTQIA+, indígenas, dentro e fora dos partidos de esquerda, devemos pressionar sempre. Isto não é trair o governo, não é abandonar o presidente recém-eleito. Isto é fazer nosso papel. É a sociedade organizada de esquerda, sem medo de ser de esquerda quem tem de pressionar o governo na direção de uma democracia mais radicalizada. Mesmo que, algumas vezes, seja necessário recuar por entender as dificuldades do cenário.

O Presidente da República tem agora duas escolhas de sua alçada para fazer no STF, com as aposentadorias dos ministros Ricardo Levandovski e Rosa Weber. Não existe explicação razoável para estas vagas não serem preenchidas por mulheres, dando início a um processo de uma futura paridade, mesmo que seja a longo prazo. E não há qualquer justificativa para que pelo menos uma destas vagas não seja preenchida por uma mulher negra (eu defenderia, inclusive, as duas), mas também é preciso pensar em juristas indígenas.

Não há mais espaço para homens brancos de ilibada reputação e reconhecido saber jurídico, possuidores de um dicionário de citações em latim. A república tem estado repleta deles. Se não atuarmos fortemente para enfrentar este modelito, se não conseguirmos este pequeno avanço, estaremos no desvio em relação a um país mais democrático.

Também há conselhos que começam a se organizar e, se for recriado um Conselho Político – a exemplo do que ficou conhecido como Conselhão nos anteriores governos Lula, que sejam revolucionariamente paritários quanto a classe, gênero, raça e etnia, orientação sexual.  Que seja absolutamente laico, que nenhum argumento religioso tenha validade na escolha. Não interessa a religião. Um padre, um pastor, um pai de santo pode ser chamado ao Conselho por sua importância como cidadão na sociedade, nunca por sua importância como religioso, ou como representante de sua congregação.

Há urgência em mudar esta moldura que engessa a democracia brasileira há séculos. Ou nos damos conta disto, ou sucumbiremos à fragilidade do projeto democrático de nosso país, sempre às portas de  artimanhas para manter privilégios seculares.

(*) Professora Emérita da UFRGS; Cientista Política; Professora convidada do PPG de História da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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