Opinião
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3 de janeiro de 2023
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07:31

E não é que ele chegou! (Coluna da APPOA)

Foto: Luiza Castro/Sul21
Foto: Luiza Castro/Sul21

Gerson Smiech Pinho (*)

A célebre canção que há mais de sete décadas saúda cada novo ano que chega não deixa dúvidas quanto à porção de satisfação que se espera de um novo ciclo de tempo. Toda vez que cantamos “adeus Ano-Velho, feliz Ano-Novo”, entoamos também a esperança de que “tudo” se realize no ano que vai nascer – o que não é pouca coisa.

Ainda que se dê um desconto ao tom exagerado dos versos, esperar que tudo que não se realizou se concretize no futuro que se aproxima não deixa de ser um sentimento que emerge de modo mais ou menos espontâneo a cada janeiro que chega. Assim, inclinamo-nos a virar as páginas do calendário, como se fosse possível deixar o passado inteiramente para trás a fim de apostar em um verdadeiro recomeço. Tendência nada estranha ao individualismo contemporâneo, afeito à crença de que cada um constrói seu destino por si mesmo, de forma autossuficiente, independentemente das referências de sua história.

Para que as adversidades deem lugar às energias positivas, algumas artimanhas são bastante populares na noite da virada, como usar roupa nova, pular sete ondas, comer doze uvas, colocar uma folha de louro na carteira ou dinheiro no sapato. Além de manter longe da ceia pratos à base de aves, pois os animais que ciscam fariam a vida andar para trás quando saboreados no Réveillon. Assim, ao menos no momento em que estamos tomados pelo entusiasmo da passagem do ano, temos a momentânea ilusão de que o pior já foi ultrapassado, que só importa mirar no futuro e olhar para a frente.

A comemoração do Ano-Novo manifesta a euforia de deixar para trás o que já aconteceu. Paradoxalmente, é o momento em que se costuma fazer a tradicional retrospectiva do que foi vivido até o momento – hora do balanço geral, de ponderar acertos e erros para investir naquilo que se ambiciona para o futuro. Assim, na abertura de cada novo ano, confluem tanto os vestígios do que já passou quanto o esboço daquilo que está por vir.

A tensão entre passado e futuro aparece expressa na denominação do mês que inaugura a entrada de cada novo ano. Janeiro faz referência a Jano (Janus, em latim), deus romano com duas faces que olham em direções opostas, uma delas voltada para a frente e a outra para trás, uma encarando o passado, a outra contemplando o futuro. Divindade guardiã das entradas e saídas, era responsável pelas portas, portais e arcos entre os antigos romanos. Jano relacionava-se às mudanças, aos princípios e aos fins, às passagens e transições, tanto no espaço quanto no tempo.

O recém-chegado 2023, este ano novinho em folha, inaugura também um momento de transição fundamental, pois coincide com o término de um dos períodos mais funestos de nossa recente e ainda frágil democracia. Virada de ano que marca uma importante passagem da história de nosso país, trazendo consigo um intenso desejo de renovação.  Busca-se fôlego para deixar para trás um tempo de sistemático ataque à memória coletiva e à cultura, de descaso com a vida, de desprezo pela diversidade humana, de devastação contínua do meio-ambiente, em que a história foi constantemente colocada sob suspeita em favor de distorções deliberadas e de notícias falsas.

Para muitos e muitas, a posse do novo presidente foi atravessada por grande comoção. As lágrimas emocionadas vieram para lavar a alma depois dos anos de horror vividos. Domingo passado, Lula subiu a rampa do Palácio do Planalto ao lado da cadela Resistência, símbolo dos dias que passou preso, além da faixa presidencial ter sido entregue por um grupo representativo da diversidade do povo brasileiro. Elementos simbólicos de um deslocamento memorável no modo como o país é retratado e na forma como sua história é narrada.

No último final de semana, a alegria tomou posse do Brasil. O rito de passagem e os discursos nele proferidos deram mostras do tanto que já é possível ressignificar, nesse ato simbólico, em relação à existência de cada brasileira e brasileiro. Porém, o entusiasmo de deixar 2022 para trás, e com ele o governo que se encerrou, não abranda em nada a barbárie vivida no último período.

Em nosso país, não é inabitual colocar de lado alguma fatia da história que se preferiria esquecer, com o que se perde uma parte da memória coletiva. Inclinamo-nos a ignorar problemas experimentados outrora, sem nos darmos conta que seus fundamentos seguem reverberando no presente e incidindo sobre o futuro. Seja na passagem do ano, seja no encerramento de qualquer outro ciclo de tempo, o sentimento de que o pior já passou não precisa necessariamente coincidir com o apagamento do passado. Ao contrário, poder lembrar do que transcorreu com a devida responsabilidade e implicação coletiva é o que pode trazer a chance de não nos encontrarmos novamente com o horror na próxima esquina da história.

(*) Psicanalista, membro da APPOA e do Centro Lydia Coriat

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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