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25 de maio de 2024
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09:50

‘Não esqueço os rostos’: Como voluntários se organizaram para resgatar milhares na zona norte da Capital

Por
Ana Ávila
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Viaduto na zona norte de Porto Alegre virou local de resgate de milhares de pessoas. Foto: Arquivo pessoal
Viaduto na zona norte de Porto Alegre virou local de resgate de milhares de pessoas. Foto: Arquivo pessoal

“No início, saía uma média de 500 pessoas por dia. Muitos nomes escaparam, mas não esqueço os rostos”. O relato é da jornalista Lidiane Blanco, que atuou como voluntária por 12 dias em um ponto de resgate e acolhimento montado no viaduto José Eduardo Utzig, na esquina das avenidas Benjamin Constant e Cairú, na zona norte de Porto Alegre.

Desde o dia 2 de maio, cerca de 6 mil pessoas e 3 mil animais foram resgatados dos bairros Anchieta, Centro Histórico, Farrapos, Floresta, Humaitá, Navegantes, Santa Maria Goretti, São Geraldo e São João e passaram pela estrutura montada na região.

“Foram 18 dias de auto-organização e logística estruturada por voluntários, onde acolhemos milhares de moradores da zona norte da Capital, região historicamente desassistida pelo poder público, praticamente sem apoio governamental”, diz uma carta aberta divulgada pelos voluntários nesta quarta (22).

Lidiane como voluntária no viaduto da zona norte da Capital. Foto: Arquivo pessoal

Lidiane explica que os últimos animais tiveram que sair no domingo (18), quando a Prefeitura pediu que os voluntários liberassem a via. “Ela queria o retorno dos ônibus na Benjamin. As veterinárias e voluntários foram até a noite conseguindo caminhão pra levar tudo. Estava difícil conseguir lar temporário para os animais resgatados”.

Ao longo de mais de duas semanas, ao menos 100 voluntários trabalharam de forma fixa, e centenas prestaram ajuda esporádica no viaduto José Eduardo Utzig, de maneira totalmente auto-gestionada. Aos moradores da Capital, juntaram-se voluntários de Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Mato Grosso do Sul, Goiás, Maranhão e Acre.

Para dar conta de atender todas as pessoas, muitos voluntários dormiram a maior parte dos dias no chão, embaixo do viaduto. Na última semana, foram disponibilizados, com a ajuda de diferentes fontes, quartos em hotéis a baixo custo.

A função de Lidiane na força-tarefa era anotar pedidos de resgate e entregar aos socorristas, de modo a evitar que se desmanchassem na água. “A gente entregava um papel plastificado com o endereço e eles iam buscar o que fosse, pessoa, gato, cachorro, periquito. Às vezes, a gente só colocava um beco, uma referência, terceira rua depois da tal, e eles achavam. Voltavam com os bichos que estavam nos telhados morrendo de fome. Ruas inteiras estão submersas, então as referências eram tão importantes quanto o GPS do celular”.

Conforme a água subia e a angústia de quem buscava os familiares ilhados aumentava, os voluntários desenvolviam estratégias para convencer quem tinha ficado a sair. “Quando era alguém que não queria sair de jeito nenhum, a gente escrevia um recado junto às coordenadas: ‘Dona Ana, seu irmão mandou lhe buscar. Ele está muito preocupado. A água não vai baixar. Aceite ser resgatada’. ‘Seu Vilmar, o João mandou dizer que está com leptospirose e não vai mais vir trazer comida. O senhor tem que sair’. Daí o socorrista lia para eles. Alguns se comoviam e saiam”, lembra Lidiane.

Nos últimos dias, a jornalista conta que a maior parte dos pedidos de resgates eram de animais. Não só cães e gatos. Porcos, cavalos, bois, galinhas. “Animais, nunca foi menos que 50 por dia, 100, 200”. Ela descreve o trabalho de Rafael, um jovem de Florianópolis que veio à Capital ajudar nos resgates. “O Rafael trazia os cavalos nadando. Achava no caminho, saltava do barco e trazia nadando”. Lidiane explica que era impossível trazer todos. Os barcos eram pequenos e a prioridade eram as pessoas.

Ela lembra também de Rosely, outra socorrista. “Gato, era muito difícil, eles estavam muito assustados, então a gente dava a missão pra ela. Vai no barco da Rosely. Era ela quem mais resgatava. Eu não lembro o nome de todos, eram mais de 100 voluntários entrando na água dia após dia. Junto comigo, nos pedidos de resgate, estavam outras meninas. Não nos conhecíamos, mas hoje somos amigas. Cada um que passou por ali foi extremamente necessário. Tantas histórias…”

O movimento era intenso na região onde milhares foram resgatados. Foto: Arquivo pessoal

A jornalista conta que, na última semana, idosas chegavam ao viaduto chorando e sentindo culpa por terem deixado seus animais para trás na hora do desespero. “Tínhamos que segurar a emoção e dizer que elas eram só mais uma vítima. Não estávamos preparados para isso. Os psicólogos voluntários tiveram que acolher não apenas os resgatados, mas nós, voluntários, diversas vezes”. “Ligar de volta e dizer ‘os socorristas não encontraram’, ou ‘a casa está submersa, não foi possível verificar’, acabava com a gente”.

Ela diz que muitas pessoas, ao serem retiradas de casa, chegavam ali abaladas, porque sem luz, sem acompanhar as notícias, não tinham noção do que estava acontecendo. “Ali, nos pedidos de resgate, éramos a última esperança deles reverem seus bichos. Alívio era o que a gente sentia quando dava certo, como quando o seu José conseguiu resgatar seus cachorros, as galinhas e pintinhos. ‘Só não achamos três galinhas, acho que morreram, mas muito obrigado. Vocês estão nas minhas orações’, nos disse ele”.

Na carta pública que escreveram, os voluntários que atuaram no viaduto José Eduardo Utzig destacam a necessidade de o poder público assumir a responsabilidade do cuidado com as pessoas e animais que estão em abrigos, casas de familiares/amigos ou ainda desabrigados dando um encaminhamento justo e digno para os mesmos.

“É imperativo que o poder público se mobilize para o acompanhamento das pessoas afetadas dentro dos parâmetros preconizados nas políticas de saúde mental, reforma psiquiátrica, no sistema único de assistência social e alinhado com as melhores evidências disponíveis para as intervenções relacionadas a emergências e desastres”, diz a carta.

Os nomes dos resgatados foram alterados para preservar a identidade das vítimas.


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