Opinião
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31 de janeiro de 2023
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07:06

A força da palavra: da paixão pela instrumentalidade à arte como resistência à barbárie (Coluna da APPOA)

Tela de Di Cavalcante danificada por bolsonaristas. (Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/ Agência Brasil)
Tela de Di Cavalcante danificada por bolsonaristas. (Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/ Agência Brasil)

Luciana Portella Kohlrausch e Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr (*)

O Ministro da Justiça e da Segurança Pública, Flávio Dino, logo após os atos terroristas que abalaram a República em 08 de janeiro de 2023, disse aos jornalistas que, agora, talvez, as pessoas entendam a gravidade das anedotas feitas pelo ex-presidente durante o seu mandato. O intuito do Ministro era chamar a atenção para o fato de que as palavras têm força, afinal, é por meio da palavra que temos a possibilidade, enquanto seres humanos, de criar e manter um pacto para sustentar a vida em sociedade. 

Em razão dessa força, a palavra também pode ser um instrumento de imposição de supostas verdades absolutas a uma massa sedenta por destruição, como pudemos testemunhar nos últimos acontecimentos no nosso país.  Assim, no pacto civilizatório em que estamos inseridos, especialmente quando vivemos em uma democracia, as palavras têm lugar essencial, precisam ser valorizadas e levadas a sério.

Enquanto psicanalistas, somos sensíveis ao valor das palavras. No cotidiano de nossa prática clínica, testemunhamos os efeitos dessas no rumo da vida das pessoas que escutamos, sobretudo, as palavras categóricas que são enunciadas com força literal. Ou seja, quando da parte de quem fala e de quem escuta, a simbolização fica enfraquecida. 

Os atos ocorridos em Brasília são uma triste evidência dessa incapacidade de simbolização. A destruição do STF, que já vinha sendo vociferada há alguns anos, foi literalmente posta em ato. Era o que pediam os cartazes dos manifestantes na época da eleição – “Abaixo STF”, “exigimos a destruição dos membros das instituições: STF, TSE e Congresso” – e foi literalmente o que eles tentaram fazer.  

Ao se fazerem objetos de slogans categóricos, demonstrando total impossibilidade de produzir deslocamentos e construir diálogos, além de sucumbirem diante de uma violência desmedida, tornaram-se instrumentos de uma suposta causa maior: “ser patriota”. Qual a extensão simbólica dessa definição? O que isso lhes diz além da indignação posta em causa e da lei própria que buscam instaurar? Quais as consequências de se fazer objeto de uma causa delirante que se supõe estar acima de tudo e de todos

Certamente, estamos diante de um fenômeno complexo e vamos precisar de muitos anos para tentar compreender aquilo que estamos atravessando. Mesmo porque, mais do que implicados, ficamos indignados com os absurdos que nos tomam de assalto a cada dia. Isso, por sua vez, também produz seus efeitos, entre outros, limitando nossa capacidade de análise e reflexão crítica. Esperamos estar suficientemente advertidos em relação a isso.

A paixão da instrumentalidade

O recente livro de Contardo Calligaris, O grupo e o mal: estudo sobre as perversões (Editora Fosforo, 2022), traz contribuições preciosas para pensar essas questões e relançar tantas outras, como por exemplo, a ascensão da ideologia de extrema direita no mundo. Com tradução de Jorge Bastos Cruz, prefácio de Jurandir Freire Costa e parceria de edição com Otávio de Souza, o livro é uma publicação a partir da tese de doutorado do autor, escrita originalmente em francês em 1991, defendida na Universidade de Psicologia e Ciências da Educação da Université de Provence Aix-Marseille 1, França, intitulada: Recherche sur la Perversion comme pathologie sociale: la passion de l’instrumentalité [Pesquisa sobre a perversão como patologia social: a paixão da instrumentalidade].

Com o propósito de interrogar o mal, tomando o nazismo como uma de suas formas de materialização, Contardo se interroga: “o que pode, afinal, ter feito um número tão grande de nossos semelhantes – filhos da mesma cultura e em época tão próxima à nossa – praticar ou participar de atos que inspiram clara aversão?” Para pensar essa questão, ele toma como referência as construções de Hannah Arendt sobre a banalidade do mal, elaboradas a partir do histórico julgamento de Adolf Eichmann. Ao constatar que o carrasco nazista servia um Outro absoluto de forma incondicional, a filósofa reconhece tratar-se de alguém tomado por palavras clichês, uma espécie de funcionário exemplar capaz de apenas executar seu macabro dever de cumprir ordens. 

A partir da tese de Arendt, Contardo vai propor o conceito de “paixão da instrumentalidade”. Ao abdicarem da responsabilidade e autoria de seus atos, ele irá dizer que os indivíduos podem fazer coisas cruéis quando acreditam que são os verdadeiros guardiões de uma causa superior. Assim, eles se fazem objetos da paixão de se tornarem instrumento do gozo do Outro. Questões fundamentais para refletir sobre os impasses de nossa época, pois nos coloca a pensar sobre como as pessoas são capazes, ainda que sob um manto de moralidade, de consentirem em aderir, voluntariamente, ao imperativo da destruição. 

Para além da singularidade e da posição fantasmática de cada sujeito a ser considerada, Contardo adverte o leitor para manter a questão sempre presente, a saber: quais as premissas sócio-culturais na tentação ao totalitarismo? Acrescentamos: como as palavras, seja em sua materialização cruenta e abjeta, seja em sua sutileza perniciosa, podem tecer uma estrutura de discurso incapaz de reconhecer as faltas, as insuficiências, as metáforas, as fraturas, as fissuras, os rasgos, os não saberes? Na precariedade simbólica dessas, a destruição pode se apresentar como única saída possível: pessoas, objetos, monumentos, obras de arte, pouco importa, o suposto patriotismo celerado vai tentar se impor acima de tudo e de todos. Mas, como vimos, a cultura, a civilização, a democracia e, felizmente, a arte, resistem.

A arte como resistência à barbárie e sua verdade insuportável

Em relação aos ataques às obras de arte, achamos importante interpretar esses atos não apenas pelo viés de uma insanidade desmedida, ou ainda, pela hipótese de ignorância alheia. Aquelas facadas no quadro As mulatas, de Di Cavalcanti, são literalmente ataques à arte e à verdade que ela representa. Portanto, sobre certo aspecto, são facadas desferidas no corpo de cada um que supõe ser interpretado pela arte.

Adriana Varejão possui uma obra intitulada Parede com incisões a la Fontana. A artista plástica brasileira traz cortes na tela, incisões, furos para despertar o vivo, representando o sangue, a carne que há por trás, a história da obra de arte. Mais ainda, sua porção viva. Mesmo cientes do quanto nossas leituras são sempre insuficientes, pois, mais do que interpretarmos, somos interpretados pela tela, olhamos e nos deixamos olhar nela como corpo, que ao ser ferido, sangra, mostra a carne. Isso nos faz pensar como Varejão coloca em cena, simultaneamente, a literalidade e a metáfora – talvez somente a arte seja capaz disso.

Parede com incisões a la Fontana é uma referência a uma obra de Lucio Fontana que subverte a arte do pincel e trabalha com o corte da tela – corte produzido pelo próprio artista. Na obra de Varejão, no entanto, são colocados elementos que dão volume e, o que decorre disso, são rompimentos, fissuras. A ferida anuncia o trauma, denunciando o rompimento de uma ordem. 

Os furos feitos naquele Di Cavalcanti, entretanto, diferente de uma representação, são uma tentativa literal de apagar histórias, de apagar a cultura e a arte. Essa que é capaz de carregar o peso de trazer algo verdadeiro, de contar e recontar a história. Nossa hipótese é a de que os terroristas trajados de verde e amarelo buscavam atacar literalmente essa verdade, sem deixar qualquer espaço para criação.  

Na arte de Varejão, ao contrário, a ideia de corte na tela é utilizada para criar algo novo. Ao subverter a forma, abrem-se novas frestas imaginárias, simbólicas e reais. Verdadeiras aberturas para a produção de enigmas. Assim, supostas verdades absolutas cedem lugar às possibilidades de as metáforas advirem, dos deslocamentos seguirem seus fluxos, e, ainda, das imagens devolverem algo de nós mesmos que talvez nem sabíamos de sua existência. 

Luciana Portella Kohlrausch é psicanalista, membro da APPOA e Instituto APPOA, mestre em Linguística pela UFSM.

Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr é psicanalista, membro da APPOA e Instituto APPOA, doutor em Psicologia Social e Institucional – UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 


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