Opinião
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29 de dezembro de 2022
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08:04

A SEMA necessita retomar seu papel de independência frente à pasta da infraestrutura

Jardim Botânico de Porto Alegre, um dos espaços ameaçados pela privatização no RS. (Foto: Filipe Castilhos/Sul21r)
Jardim Botânico de Porto Alegre, um dos espaços ameaçados pela privatização no RS. (Foto: Filipe Castilhos/Sul21r)

APEDEMA e coletivo de entidades (*)

Há 23 anos, surgiu a Secretaria Estadual de Meio Ambiente, separada da então Secretaria de Saúde e Meio Ambiente (instituída pela Lei n. 11.362 de 29/07/2019). Foi um ato histórico, de origem do executivo, mas de demanda da sociedade, comemorado com muita alegria e entusiasmo pela Assembleia Permanente de Entidades em Defesa do Meio Ambiente (APEDEMA-RS), suas entidades afiliadas e por diferentes setores da sociedade gaúcha, na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul. Na época, mais de uma centena de pessoas estavam lá na ALRS, com muita emoção, saudando este fato histórico.

A partir do surgimento da SEMA, ganharam maior valorização e integração vários órgãos estaduais de meio ambiente. Além da Fundação Estadual de Proteção Ambiental Henrique Luís Roessler (Fepam), integravam também a mesma secretaria a Fundação Zoobotânica (Museu de Ciências Naturais, Jardim Botânico e Parque Zoológico), os Departamentos de Biodiversidade (antes DEFAP, hoje DBio) e de Recursos Hídricos (DRH), entre outros setores da SEMA. Estes visavam atuar, de forma mais integrada, não só como órgãos licenciadores, mas visavam a Gestão Ambiental, via estudos de qualidade ambiental, zoneamentos, monitoramentos e fiscalização, de forma integrada a fim de cumprir os objetivos do Sistema Estadual de Proteção ao Meio Ambiente (SISEPRA), conectados também às normatizações do Conselho Estadual de Meio Ambiente (CONSEMA).

Entre os exemplos importantes de avanços na gestão, podemos citar a construção do Zoneamento Ambiental da Silvicultura, mesmo sob as tentativas de enfraquecimento de parte do governo da época, tendo-se obtido a garantia da manutenção de limites ao setor, incluídos na Resolução Consema n. 227 de 2009. Da mesma forma, a elaboração de Avaliações Ambientais Integradas (AAI) do rio Taquari Antas e do rio Ijuí, entre outras, também definiram diretrizes importantes de limites ou restrições a atividades que poderiam ultrapassar a capacidade de suporte ecológico de bacias hidrográficas frente a um conjunto numeroso ou de grandes dimensões de empreendimentos previstos para cada uma delas. A visão de licenciamento pontual, sem ver o todo, parecia ser coisa do passado.

Entretanto, principalmente a partir de um novo governo em 2015, e sem discussão com a sociedade, criou-se a Secretaria de Ambiente e Desenvolvimento Sustentável. A área ambiental e os zoneamentos técnicos, com menor ingerência político-governamental, foram sendo enfraquecidos pelas demandas econômicas imediatistas, incorporando desde 2019 uma infraestrutura hegemônica cuja sustentabilidade é profundamente questionável. Neste clima de predomínio de interesses de negócios, testemunhamos, entre tantos retrocessos, a extinção da Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul, os decretos que excluíam espécies marinhas na Lista da Fauna Ameaçada do Rio Grande do Sul e que retiravam a obrigatoriedade de manutenção de Reserva Legal no Bioma Pampa. Apesar disso, um tímido Zoneamento Ecológico-Econômico do Estado foi iniciado, mas posteriormente engavetado.

Cabe lembrar que outros retrocessos também ocorreram, paralelamente, no Conselho Estadual de Meio Ambiente (Consema), no final da década de 2010, a partir de um projeto de Lei do governo da época que vinculou o papel do presidente do Conselho na figura, obrigatória, a partir de então, ao Secretário Estadual de Meio Ambiente, ao contrário, por exemplo, do Conselho Estadual de Saúde, que mantém o princípio democrático de não vincular o nome do presidente do Conselho ao governo.

Na sequência de retrocessos, em 2019, a junção da Secretaria de Meio Ambiente com a Infraestrutura do Estado do Rio Grande do Sul enfraqueceu ainda mais as políticas ambientais. Em grande parte, a perda da ênfase se dá porque o mesmo chefe da pasta tornou-se também o encarregado de promover atividades econômicas, em sua maioria carecendo também de estudos amplos de viabilidade socioambiental. São casos emblemáticos desta incompatibilidade o incentivo governamental à mineração, em especial de carvão, e à geração de energia com base em combustíveis fósseis (termelétricas que lançam poluentes e gases de efeito estufa) ou mesmo a construção de dezenas ou mais de uma centena de hidrelétricas em uma só bacia hidrográfica, incluindo PCHs, sem falar na promoção da privatização do setor de abastecimento de água e de tratamento de esgotos, hoje todos estes setores reunidos na SEMA. Estas últimas iniciativas deram espaço recente para a chefe da pasta ambiental levar adiante a privatização da CORSAN, a partir de derrubadas de processos democráticos que incluíram a obrigatoriedade constitucional de realização de plebiscito junto à sociedade gaúcha.

É fundamental destacar que a Gestão Ambiental requer independência e autonomia de parte dos órgãos de meio ambiente, em especial dos setores técnicos do quadro de pessoal concursado e com estabilidade necessária para, por exemplo, elaborar pareceres técnicos que possam embasar eventual indeferimento de licença ambiental em relação a um empreendimento ou uma atividade que possam representar grandes impactos ambientais negativos. Tal independência é fundamental a fim de se superar a recorrente pressão, para não dizer as tentativas de assédio funcional de parte de governos sobre a área técnica, o que enfraquece e desestrutura as políticas públicas e seus órgãos ambientais que devem resguardar a qualidade de vida para todos os seres, além do ser humano.

O cenário de crise ambiental não tem precedentes. Estamos sendo testemunhas da extinção de espécies, do rompimento de processos ecológicos e da erosão da diversidade genética e biológica, sendo todos estes itens, entre outros, vedados pelo Artigo 225 (§ 1º) da Constituição Federal. Lamentavelmente, a proteção ambiental volta a ser subjugada pela área de uma infraestrutura do século passado, em um cenário perverso de competitividade global (neoliberalismo) que luta para minimizar barreiras aos negócios.

Atualmente, a pauta ambiental já é ampla e complexa, em crise crônica pelo esvaziamento numérico do corpo funcional e de recursos governamentais na área, além da dificuldade de integração interna dos setores de meio ambiente e em diferentes âmbitos. A incorporação de uma infraestrutura convencional é ambientalmente perversa. Vivemos em um Estado refém da exportação de soja, de celulose, de tabaco, entre outros produtos que agregam pouco valor, ou se investe em mineração em áreas prioritárias para a biodiversidade e no setor automobilístico individual. Diferentes setores econômicos, com trânsito nos governos, semeiam um imaginário de redenção econômica via grandes empreendimentos de geração de energia concentradores de capital, ou no setor imobiliário, em grandes comércios e numa infindável intervenção de projetos com significativos impactos ambientais.

O SISEPRA é um desafio constante, como também é o Sistema Nacional de Meio Ambiente (SISNAMA), mas está a “anos luz” de ser atingido, necessitando urgentemente ser retomado com mais empenho pelo governo e pela sociedade. O atual vício e/ou supremacia do peso no licenciamento ambiental, com aumento de um injustificável autolicenciamento, nos diferentes âmbitos (federal, estadual e municipal), não pode ser encarado com naturalidade. Ademais estes processos estão focados na análise isolada de impactos de cada atividade, ou seja, com baixa visão integrada do todo. A convencional infraestrutura tornou-se refém de uma economia parcial hegemônica que não consegue ou não tem tempo ou interesse de enxergar o todo.

Neste sentido, carecemos ainda de um Zoneamentos Ecológicos e Econômicos (ZEE) para o Estado e para o País, itens já previstos há mais de 40 anos pela Política Nacional de Meio Ambiente (Lei Federal n. 6.938/1981). Os temas como poluição, biodiversidade, licenciamentos ambientais, zoneamentos, qualidade ambiental, recursos hídricos, entre outros – com o agravante do problema da emergência climática – necessitam esforços gigantescos inclusive de serem avaliados seus efeitos cumulativos e sinérgicos. Os órgãos ambientais sofrem de déficit crescente de contingente técnico na área.

Diante do agravamento das condições ambientais, desde o nível planetário até o local, é inconcebível que setores econômicos e políticos reclamem, e sem justificativas, quanto ao que chamam de “demora” no processo de licenciamento. Esquecemos que a natureza levou milhões de anos para dar origem a ecossistemas e suas espécies e comunidades adaptadas a determinadas condições ecológicas muitas vezes particulares em relações predominantemente harmônicas.

Infelizmente, a grita empresarial abstrai este tempo da natureza. Os reclamantes, em geral, são os mesmos setores que desenvolvem atividades pouco sustentáveis no “xadrez” da globalização econômica, jogando para baixo seus custos ambientais e sociais, sem levar em consideração a diminuição da capacidade de suporte dos ecossistemas para manter os processos de resiliência frente aos impactos constantes e crescentes contra o meio ambiente. Nesta equivocada concepção, a influência empresarial pesou forte, junto ao governo do Estado, na aprovação da Lei n. 15.434/2020, que instituiu um novo Código Estadual de Meio Ambiente do Estado do Rio Grande do Sul, incorporando centenas de retrocessos em artigos do Código anterior (Lei n. 11.520/2000).

Da mesma forma, além do retorno da SEMA conquistada pela sociedade gaúcha, necessitamos de um Conselho Estadual de Meio Ambiente (Consema) que tenha mais autonomia frente ao governo, questionando também a junção da pasta com uma infraestrutura, historicamente incompatível com a área de meio ambiente. Ademais, o Conselho deve ser provocado pela sociedade a fim de retomar seu papel formulador de políticas ambientais de interesse público, e não meramente econômico, superando a atual assimetria de representação e decisões que pesam mais para os interesses governamentais e empresariais do que pelos interesses públicos de proteção ambiental defendidos predominantemente pelas entidades representantes da sociedade.

Assim, a Apedema-RS, as entidades a ela filiadas e outros setores da sociedade vêm lançar aqui uma campanha urgente, que sensibilize o governo do Estado, para que a SEMA retorne a suas origens previstas em 1999, rompendo tutelas e conflitos de interesses com a área de infraestrutura, respeitando-se, desta forma, sua atribuição e sua autonomia necessárias para o funcionamento de uma secretaria com seus órgãos exclusivos já previstos há mais de 40 anos pela Política Nacional de Meio Ambiente.

(*) Assinam:

– Assembleia Permanente de Entidades em Defesa do Meio Ambiente do Rio Grande do Sul- Apedema-RS
– Amigos da Terra Brasil
– Amigos do Meio Ambiente – AMA
– Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural – AGAPAN
– Associação Ijuiense de proteção ao Ambiente Natural – AIPAN
– Associação de Mães e Pais pela Democracia – AMPD
– Centro de Estudos Ambientais – CEA
– Comunidade Autônoma Orquídea Libertária
– Cooperativa de Trabalho Mista Solidária Utopia e Luta – Coopsul
– Grupo Ecológico Sentinela dos Pampas – GESP
– Instituto Econsciência
– Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais – InGá
– Instituto MIRA-SERRA
– Movimento Ciência Cidadã
– Movimento Roessler para Defesa Ambiental
– Movimento de Justiça e Direitos Humanos – MJDH
– Movimento Laudato Si – RS
– Movimento Utopia e Luta
– Pastoral da Ecologia Integral da CNBB
– Pastoral da Ecologia CNBB Sul 3
– União Pedritense de Proteção ao Ambiente Natural- Dom Pedrito-RS – UPPAN
– União Protetora do Ambiente Natural – UPA

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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