Opinião
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15 de novembro de 2022
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07:00

O que você faz no seu tempo livre? (Coluna da APPOA)

Imagem: Pixabay
Imagem: Pixabay

Luciano Mattuella (*)

Caro leitor, cara leitora, eu gostaria de começar esta coluna fazendo uma pergunta: o que você faz no seu tempo livre? Quais os seus interesses fúteis, seus passatempos sem finalidade alguma, seus hobbies despretensiosos?

Se você respondeu: “Ora, eu não tenho tempo livre”, pode ter certeza que você não está sozinho. Você ficaria surpreso com a quantidade de pacientes que respondem exatamente desta forma quando faço essa pergunta a eles. 

Estamos todos tão alienados a uma lógica de produtividade o tempo todo que até pode nos parecer ofensivo alguém supor que dedicaríamos um tanto de nossos dias a atividades completamente… inúteis.

A inutilidade, em nossos tempos, parece ter entrado para o rol dos pecados capitais: aquele senhor está colecionando figurinhas da Copa do Mundo? Para a fogueira! A moça ali gosta de ver reality shows ruins quando chega do trabalho? Pois que seja excomungada! A criança, ora vejam, aquela criança está assistindo Patrulha Canina? Mas ela foi no inglês? E no ballet? E já fez todos os temas?

Sim, leitor, você sabe que até às crianças temos privado do regojizo de simplesmente não fazer nada de útil, de se ocuparem com alguma coisa que não gera lucro, nem dividendos e muitos menos que se transforme em um produto. 

E não me venha, por favor, com esse papo de “ócio criativo”. Quando até mesmo o ócio tem que servir para algo, aí mesmo que estamos condenados. Nada mais neoliberal do que dizer que sim, que você pode ter aí seu momento de não fazer nada, desde que isso sirva para você estar descansado para ser ainda mais produtivo no dia seguinte.

Pois bem, leitor, este aqui é um texto em defesa do ócio completamente inútil, do hobby sem utilidade alguma, do passatempo absolutamente vadio.

Vivemos em um tempo em que confundimos cenhos fechados e caras sisudas com seriedade e dedicação. Aplaudimos aquele que acorda todo dia muito cedo, toma seu café-da-manhã de forma muito rápida e chega no trabalho muito esbaforido. De uma forma bem estranha, cultivamos esse gosto curioso pelo cansaço e pela exaustão, pelo muito, carregamos com a gente o mandamento da utilidade. 

Com isso, também vamos apagando da vida uma dimensão infantil que tanto nos faria bem reencontrar, uma parte lúdica que, com sorte, ainda nos habita e que anseia por um tempinho livre vendo televisão de pernas pro ar. Tanto assim que até mesmo dizemos, de forma julgadora, que “fulano de tal tem gostos infantis”. Tudo bem que eu, que aqui escrevo, não tenho tanta paciência para filmes de super-heróis, mas morro abraçado no direito de que cada leitor possa esquecer da vida enquanto assiste ao Homem de Ferro dar um safanão bem dado no Capitão América. 

Mas, olha, caso alguém aí tiver aquele cromo especial do Messi, estou aberto a negociações.

Brincadeiras à parte – mas não tanto -, acho surpreendente como se criou todo um pacto social que avaliza certos gostos e interesses em detrimento de outros. Vai ver um filme? Tem que ser Godard, tem que ser Gus Van Sant… não me venham com Adam Sandler, por favor! Sempre me inquietou o quanto as pessoas se sentem autorizadas a dizer o que o outro pode ou não gostar, onde deve investir o seu tempo, quais são os hobbies aceitos. Tudo aquilo que não produz nada é visto como infantilizado ou ridículo. 

Curiosamente, esta forma de pensar o mundo diz muito menos da seriedade e muito mais sobre uma alienação profunda e radical ao discurso do capitalismo tardio, uma lógica que opera pela proscrição de tudo o que não puder ser convertido em cifrões e elencado em planilhas de Excel. 

Quando atribuímos como marco da vida adulta o exercício da utilidade, esquecemos que ser produtivo não tem nada a ver com maturidade. Não são os gostos e interesses de alguém que dizem se essa pessoa é adulta, longe disso. O que realmente nos faz adultos é a nossa capacidade de suportar o peso de decepcionar aqueles que amamos e que supomos que nos amem, de não nos confundirmos com o que os outros esperam de nós.

Afinal, basta supormos sermos amados para logo nos perguntarmos como devemos agir para não perder esse amor. Nosso maior medo, no fim das contas, é sermos completamente supérfluos, é acreditar que não faríamos falta para ninguém caso sumíssemos do mundo. Temos muita dificuldade de pensar que podemos ser amados sem estarmos em dívida: aprendemos isso na infância e carregamos essa lógica conosco vida afora. Só mudamos o alvo das nossas preocupações: se, lá atrás, perguntávamos o que deveríamos fazer para sermos amados pelos nossos pais e cuidadores, agora nos questionamos como devemos performar para que o mundo nos reconheça como cidadãos dignos de respeito – e salário.

Este é um discurso tão potente que falamos de “guilty pleasures”, ou “prazeres culpados”, em bom português. Supormos que existam passatempos menos ou mais culpáveis implica dizer que até o mais privado espaço de nossas vidas está tomado por essa alienação à toada da produtividade e da utilidade. Neste sentido, aquele álbum de figurinhas ou reality show ruim acabam se tornando formas íntimas de resistência, uma revolução particular contra precisarmos ser sempre úteis e produtivos. 

Poder decepcionar o deus Mercado (que não existe, aliás) talvez seja, hoje em dia, uma das transgressões mais adultas possíveis. Suportar a ideia de que nem toda a nossa vida precisa ser um sacrifício de tempo e energia aos mandamentos da produtividade é mais maduro do que vestir aquela gravata sem graça de manhã e chegar no escritório com uma mancha apressada de café na camisa. Vestimos essa fantasia de bons meninos e boas meninas, orgulhosos da nossa utilidade, quando tudo isso não passa de pura e simples obediência.

E, cá entre nós, não existe nada mais assustador do que uma criança obediente o tempo todo. 

Quem dirá um adulto.

***

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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