Opinião
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29 de novembro de 2022
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06:42

Nomear o espectro (Coluna da APPOA)

Pessoas observam oficial nazista atacar loja de um judeu na
Pessoas observam oficial nazista atacar loja de um judeu na "Noite dos Cristais" (Foto: Arquivo de Yad Vashem)

Alexei Conte Indursky e Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr (*)

 

Quando Elisheva Avital abriu um esquecido álbum de fotografia de seu avô – um soldado norte-americano que servira ao exército alemão na década de trinta – ela sentiu como se “tivessem queimado um buraco em suas mãos”. Ela se deparava com um dos raros registros que mostravam as polícias alemãs em ação no emblemático acontecimento que ficou conhecido com a Kristallnacht, “A noite dos cristais quebrados”. Ocorrida há oitenta e quatro anos, nessa noite milhares de casas, lojas e sinagogas foram depredadas e queimadas, dezenas de judeus foram assassinados e outros milhares foram forçados a deslocarem-se a guetos e, mais tarde, a campos de trabalhos forçados.

Como é sabido, “A noite dos cristais” passou para a história como um dos marcos iniciais do Holocausto, em que mais de seis milhões de pessoas (judias, ciganas, comunistas, portadoras de deficiência, gays, lésbicas, trans, negras) seriam exterminadas de forma sistemática e planejada pelo governo nazista alemão. O que pouco se fala hoje é que a versão oficial fabricada pelo governo à época é de que se trataria de uma reação espontânea de revolta da população ao assassinato do então diplomata alemão Ernst von Rath em Paris, pelo jovem judeu revolucionário, Herschel Grynszpan. O que se procurava ocultar não era apenas a participação direta do governo nazista em um dos primeiros pogroms contra judeus e comunistas alemães, mas igualmente que essa onda de violência era resultado direto das formas discriminatórias inauguradas pelas Leis Raciais de 1933, em que os ditos “cidadãos de segunda classe” deveriam ter suas casas marcadas com estrela de Davi, sua circulação restrita a partes específicas das cidades e seus comércios boicotados pelos cidadãos arianos de bem. 

No momento em que testemunhamos absortos a revolta de certos brasileiros com o resultado da eleição à Presidência da República, convém refletirmos sobre o que está em jogo nessas manifestações que oscilam entre o ridículo e o que há de mais perverso na cultura. Os ditos “patriotas”, além de se insurgirem em diversos atos antidemocráticos, clamam na frente dos quartéis em busca do espectro das fardas, pedindo intervenção militar e um atestado para declarar a falta de legitimidade das urnas. Ora, eles esqueceram o quanto as ditas forças armadas foram peritas em inviabilizar eleições em mais de duas décadas no nosso país? Como se não bastasse esse clamor por engraxar coturnos, os autointitulados “homens de bem” chegaram ao absurdo de exigirem que os “esquerdistas”, proprietários de estabelecimentos comerciais, deveriam pintar a estrela vermelha na frente do próprio comércio. 

 Como disse Derrida, um fantasma é sempre um retornante. Neste caso, ele retorna dos escombros do nazi-fascismo e de uma ditadura que ainda não foi, mas precisa ser passada a limpo.

Ainda que as palavras sejam insuficientes para dar algum sentido diante desse horror, é necessário buscar encontrá-las, apesar de tudo. E, embora possamos reconhecer um método nessa junção entre paranoia e perversão, precisaremos de alguns anos para compreender o que estamos atravessando. 

Oficiais nazistas carregando livros para serem queimados (Foto: Yad Vashem/Arquivo)

Tamanha barbárie facilmente é tomada como bizarrice sem grandes consequências. No entanto, como psicanalistas, nos cabe fazer duas ponderações. Primeira, esses supostos “homens de bem”, ou melhor, a serviços dos bens, podem encarnar as mais diversas tiranias; segunda, certos espectros traumáticos da nossa história, quando não elaborados, estão sujeitos a retornarem através de formas nefastas e abjetas. Nas últimas semanas, tomamos conhecimento da preocupação de alguns colegas por terem sido incluídos numa lista de boicote, elaborada para identificar, agrupar e desmoralizar os “esquerdistas” da cidade. Os nomes, as histórias, as trajetórias, transformaram-se em signos do mal a serem eliminados e extirpados em uma espécie de purificação revolucionária. A submissão cega ao tirano que habita em cada um impede a capacidade de pensar, podendo engendrar atrocidades de diferentes naturezas.

Alguns irão ponderar que não há nada de novo aqui, afinal o discurso bolsonarista sempre se nutriu do ódio, da lógica do bode expiatório e da promessa de um golpe que abolisse a autonomia dos poderes da república. Há inclusive aqueles que chegaram a propor que, após a derrota no pleito, deveríamos passar a nomear a turba patriótica de “extrema direita”, sugerindo um suposto declínio do bolsonarismo.

Propomos aqui uma outra leitura: a desaparição – perversamente calculada – do líder e a autorização de seus seguidores às piores violências em seu nome é um momento de afirmação crucial do neofascismo bolsonarista, uma espécie de emergência de uma verdade. Mas que verdade é essa? Trata-se da emergência daquilo que estava colocado no discurso, na palavra, na promessa do líder e quando este perde, desaparece e emudece, ressurge na dimensão do ato. A segregação, o assassinato político, o fanatismo que muitos apoiadores defendiam não passar de um mero jogo de retórica, estão agora escancarados à luz do dia e colocados em ato. Repitamos: este não é um efeito adverso, mas um momento de verdade do bolsonarismo

 Portanto, se cedermos da nomeação do bolsonarismo como neofascista, se quedarmo-nos rindo complacentes aos crimes cometidos, ou ainda aceitarmos esse apagamento calculado, estaremos coletivamente autorizando a normalização do neofascismo em nossa cultura.

Talvez seja o caso de lembrarmos da importância do ato de nomear. Nomear é o primeiro passo que dispomos para que possamos nos responsabilizar por algo que aconteceu. Nomeamos algo para construir coletivamente um laço compartilhado, para evitar que cada um habite uma loucura privada, sem limiar de alteridade, para que através da linguagem construamos um comum. Na contramão disso, a segregação neofascista vem incidir sobre o real, marcar a ferro em brasa um signo do mal, impor uma diferença, autorizar sua eliminação, matar o nome.

Não por acaso os militares brasileiros se esforçaram ao longo desses anos em apagar os nomes, impossibilitar que soubéssemos quem foram os torturadores, julgá-los e construir assim uma política alicerçada na memória, ao invés do esquecimento e da mentira. Impedir uma nomeação, relegar ao silenciamento, eis a estratégia perversa do poder para interditar o luto em sua dimensão pública e política. Nesse sentido, a desaparição de Bolsonaro é perversa porque visa deliberadamente essa interdição. Ao desaparecer, Bolsonaro age para que seus seguidores sigam mobilizados, para que a revolta, dita espontânea, não leve ao reconhecimento da perda do pleito, como no luto normal, mas seja o afeto principal do neofascismo brasileiro. A revolta baseada na recusa do nosso laço compartilhado, instrumentalizada por certos agentes públicos e financiada por certos empresários.

Nomear o neofascismo brasileiro e seus partícipes é, portanto, o primeiro passo para nos responsabilizarmos e julgarmos os crimes que estão sendo cometidos sem cessar no Brasil. Não precisamos mais esperar oitenta anos para que fotos como as de Elisheva nos revelem tais pactos espúrios. Está tudo registrado em vídeos compartilhados Brasil afora. E nossas mãos estão constantemente em brasas.

Os anos que se anunciam em um incerto horizonte de esperança serão decisivos para que reconstruamos os laços de humanidade que foram e estão sendo esgarçados e dilacerados. Para que refundemos a política sob a égide da memória, ao invés da segregação, do silenciamento e da mentira.

Finalizamos esse texto lembrando o discurso final do promotor Julio Strassera, recentemente encenado no filme Argentina 1985, quando do julgamento dos militares que participaram da ditadura argentina: “Salvo que a consciência moral dos argentinos tenha descido a níveis tribais, ninguém pode admitir que o sequestro, a tortura e o assassinato constituam feitos políticos ou contingências de combate. Agora que o povo argentino recuperou o governo e o controle de suas instituições, assumo a responsabilidade de declarar em seu nome que o sadismo não é uma ideologia política, nem uma estratégia bélica, senão uma perversão moral”. 

Nunca mais!

Alexei Conte Indursky é Psicanalista, membro da Appoa

Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr. é Psicanalista, membro da Appoa e Instituto Appoa, doutor em Psicologia Social e Institucional – UFRGS, autor do livro Hamlet com Lacan e alguns outros. Editora Escuta: São Paulo, 2022

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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