Opinião
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29 de outubro de 2022
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09:11

Votar pelo futuro da educação superior (por Ricardo Crissiuma)

Leitura da
Leitura da "Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do estado democrático de direito", na Faculdade de Direito da UFRGS. Foto: Luiza Castro/Sul21

Ricardo Crissiuma (*)

Votar nestas eleições também é se posicionar acerca do futuro da educação superior no Brasil e no Rio Grande do Sul. Para aqueles que valorizam a ciência, o conhecimento, a cultura, este texto é um alerta para o que está em jogo nas urnas neste próximo domingo.

Palco de momentos chaves da nossa história, sede da formação de tantos profissionais, frente de batalha na luta contra a pandemia da Covid-19, a UFRGS não para de gerar conhecimento, cultura, ciência, tecnologia e oportunidades para os gaúchos e gaúchas. Atualmente, contamos com 33.034 alunos em cursos de graduação, 6.127 doutorandos e 6.113 mestrandos. No ano passado, diplomamos 1170 mestres e 775 doutores. Entre 2015-2019, publicamos um total de 16.814 artigos. Números como estes têm colocado a nossa universidade recorrentemente nos primeiros lugares dos mais diversos rankings de instituições de ensino superior no Brasil, sempre honrando a confiança que nos foi depositada pela sociedade. Mas se chegamos até aqui foi por conta de três princípios: políticas públicas de apoio à ciência e à tecnologia, autonomia universitária (CF art. 207) e liberdade de ensino e pesquisa (CF art. 206, II, III). Hoje, esses três princípios estão ameaçados.

Durante os últimos quatro anos, assistimos a um processo sistemático de desinvestimento e desestruturação das políticas públicas para a educação superior. Diretamente afetada por este cenário, a UFRGS tem sofrido com o sucateamento da infraestrutura e a perda de recursos humanos. O seu número de técnicos administrativos contratados caiu de 2669 em 2016 para 2452 em 2021; o de funcionários terceirizados caiu expressivamente de 1955 para 1349, 31% de queda. A curva do número de docentes permanentes, ascendente desde 2010, inverteu-se bruscamente em 2018, indo de 2775 para 2709 no ano passado. Em tempos de crise econômica, moradores da casa dos estudantes foram de 542 para 364. A taxa de inscritos para nosso vestibular despencou. Houve dias em que faltaram lâmpadas para dar aula. Houve dias em que faltou material básico de limpeza e higiene. Aos docentes do campus do Vale, é comum a percepção de que, após o corte de linhas e passe de estudante, as salas de aula estão ficando cada vez mais esvaziadas.

A verdade é que não só a UFRGS, mas as universidades públicas hoje estão atravessadas por um desencontro trágico. De 2003 a 2016, com expansão e interiorização dos campi universitários, a implantação do SISU e a aprovação da lei de cotas, instaurou-se um processo que levou as universidades públicas a tornarem-se mais abertas e receptivas à entrada de jovens de famílias pobres e periféricas. De 2016 em diante, a infraestrutura, os recursos humanos e as políticas de permanência vêm sofrendo cortes e reduções que têm o efeito de levar à desistência e ao abandono dos cursos consoante a uma concepção de universidade para poucos. Ante um alunado socioeconomicamente mais carente, a correlação entre a retirada da rede de apoio e o financiamento dos estudantes e o comprometimento da dedicação aos estudos se faz sentir imediata e intensamente. Muitos alunos passam a depender ou do privilégio de se contar com apoio familiar ou do sacrifício de horas de sono e descanso após jornadas exaustivas de trabalho – não à toa o aumento de casos de transtornos psíquicos têm se tornado um problema agudo nas universidades. Há o agravante inflacionário. Todos devem ter sentido no bolso, afinal, – e muitíssimos brasileiros também no estômago – o aumento de 24,89% da inflação nos últimos quatro anos. Pois as bolsas de Iniciação Científica e Assistência Estudantil mantiveram-se congeladas em R$ 400,00. Ora, se a inflação foi puxada sobretudo por alimentos e transportes, cabe a pergunta: como os alunos e alunas conseguem manter-se estudando no ensino superior? Resposta: muitos não conseguem. Simplesmente evadem ou comprometem o empenho e a dedicação aos estudos em cursos de excelência para exercer trabalhos precários que não requerem qualquer qualificação e são destituídos de qualquer viés formativo. Já surgem relatos de alunos e alunas pedindo em semáforos nas imediações de campi das universidades federais para conseguir dinheiro para continuar os estudos.

Os bravos que tiram seu diploma e chegam à pós-graduação encontram um cenário de pouquíssimas perspectivas, com bolsas de mestrado ou doutorado completamente defasadas e editais de apoio sem transparência, previsibilidade ou dotação orçamentária minimamente condizente com os números de projetos de qualidade submetidos. Desde a posse do atual governo, a bolsa de mestrado corresponde a R$ 1.500,00; a bolsa de doutorado a R$ 2.200,00, tendo atravessado o governo inteiro sem reajustes. Como se planejar pessoal ou institucionalmente sob essas condições? Como não se sentir atraído ou atraída a abandonar o país em busca de melhores condições de pesquisa? Pesquisadores de ponta se veem, hoje, praticamente coagidos a deixar o país. Dado o nível de excelência alcançado pela pós-graduação nacional em diversas áreas, não é difícil para ele(a)s encontrarem colocações em instituições em outros países. Está em curso uma diáspora de talentos. E todo o esforço de gerações acaba canalizando para empregos distantes da área de Pesquisa, Ciência e Tecnologia  ou vai gerar seus frutos em países estrangeiros.

Há quem se mostre indiferente a este quadro. Uma indiferença alimentada por um discurso contrário à universidade pública – do qual, aliás, os ministros da educação do governo Bolsonaro foram próceres. O discurso anti-universidade pública esconde, no entanto, que um cidadão com diploma de ensino superior ganha quatro vezes mais do que aquele que não terminou o ensino médio. Esconde que o Brasil tem 900 pesquisadores a cada milhão de habitantes no país, quando, em países desenvolvidos, este número chega a cerca de 4 mil. Esconde que o Brasil tem 19.6% (2021) da sua população entre 25-64 anos com ensino superior completo enquanto o Chile tem 25.2% (2021). Esconde que só 0.8% desta mesma faixa da população brasileira tem mestrado enquanto a média da OCDE é 18.9%; 0.1% tem doutorado enquanto a medida da OCDE é 1.3%. Esconde que 90% do total da pesquisa no país é feito em universidade pública. Esconde que a crise das políticas públicas também envolve as instituições privadas que se destacam em pesquisa e inovação e que também dependem das bolsas e dos financiamentos dos poderes públicos, como vimos no recente fechamento de vários dezenas de programas de Pós-Graduação na PUC-RS e na Unisinos – inclusive alguns de excelência reconhecida pela CAPES.

Alguns poderiam alegar que o desinvestimento nas universidades se justifica pelas escolhas difíceis que todo governo tem de fazer quando se depara com um orçamento apertado: diante de poucos recursos, cabe priorizar o ensino básico e não o superior. Esta justificativa exculpatória, mesmo se tivesse algum fundamento enquanto política pública, não teria, no caso, o mínimo respaldo na realidade. Todo este quadro das universidades não destoa em nada do cenário mais amplo da educação pública. Ao longo do atual mandato, o Ministério da Educação teve quatro ministros – sem contar os que sequer assumiram após serem indicados para o cargo. Uma média de um por ano. Todos se notabilizaram pela falta de qualificação para o cargo e pela disposição para entrar em polêmicas vazias. Mais recentemente, foram revelados casos graves de corrupção.

Não há agente relevante da sociedade na área educacional que possa fugir à constatação da inépcia do governo Bolsonaro na educação pública. Alardeado como prioridade, não houve qualquer progresso no ensino técnico. O número de matrículas nessa modalidade no ensino médio ficou estagnado ao redor de 1,9 milhão ao longo de todo o governo. A canetada com que se concedeu 33% de reajuste para professores da rede pública nada mais foi do que um rito burocrático necessário ao cumprimento da lei do FUNDEB. A renegociação da dívida de 92% dos estudantes do FIES não foi um ato de governo, mas uma reação de um candidato à reeleição para esvaziar uma proposta prometida pelo seu principal adversário no pleito. No interior do Ministério da Educação proliferaram casos de intimidações, assédio moral e perseguições ideológicas. Dados sobre políticas públicas não puderam ser publicados. Houve interferência no processo de construção do questionário do ENEM. Políticas públicas foram delegadas a grupos de interesses que negociam a liberação do orçamento do ministério por autopromoção de pastores em bíblias e enriquecimento ilícito de suas igrejas. 

Os desafios para a educação superior sempre foram enormes. Mas, acima de questões de diferenças político-partidárias, é preciso constatar e comparar o que foi feito. E o contraste do governo atual com a expansão vivida em toda a região Sul do país entre 2002 – 2017 é estarrecedor. Neste período, o Sul foi a região que teve proporcionalmente o maior aumento de universidades públicas do Brasil, saltando de 6 para 11. Também fomos a região do país que, proporcionalmente, apresentou o maior crescimento no número de cursos, no número de  matrículas e no número de vagas em universidades federais, que aumentou 320,2%. Entre 2002 e 2016, também houve um crescimento do “número de programas de pós-graduação no Rio Grande do Sul, de 102 para 239, e de grupos de pesquisa cadastrados no diretório do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), de 1.869 para 3.601”. 

Bolsonaro reeleito pode significar um ponto de não retorno para a pretensão do Brasil de consolidar um sistema de universidades públicas que concilie compromisso social e excelência acadêmica. Pois não se trata só do atual governo não ter priorizado o ensino superior. Devemos reconhecer que o atual governo enxerga as universidades públicas como inimigas. E, em certo sentido, são mesmo. Porque ciência, cultura e conhecimento, mais cedo ou mais tarde, sempre se colocam como um entrave a projetos autoritários de poder. E quando isso ocorre, os governos não costumam se contentar com o estrangulamento orçamentário, eles avançam contra a autonomia institucional e a liberdade de ensino e pesquisa. 

Na UFRGS, tivemos um caso grave de indicação para reitor da nossa universidade de legitimidade altamente contestável (nunca é demais lembrar que o reitor foi empossado mesmo depois de ter recebido míseros 3 votos de um total de 77 no Conselho Universitário). Desde a posse da nossa reitoria, os nossos fóruns colegiados de deliberações são desrespeitados recorrentemente e há baixíssima transparência em relação ao orçamento da universidade. 

Mas a UFRGS não está isolada. Foram inúmeras as indicações a contrapelo dos processos de consulta e eleição pelos colegiados máximos de instituições federais de ensino superior. Cabe lembrar que este governo protagonizou dois ensaios de, por meio da edição de medidas provisórias sucessivas (MP 914/2019 e MP 979/2020), ampliar a discricionariedade do presidente na indicação de reitores e dirigentes de Universidades e Institutos Federais. Mas os ataques não vieram somente à autonomia institucional. Já em 2019, a questão da liberdade nas instituições acadêmicas no Brasil mereceu a capa do relatório anual de 2019 Free to Think, da associação Scholars at Risk. De 2020 a 2022, assistimos a tentativas em série e recorrentes por parte do governo federal de intervir mais diretamente na estrutura de poder das instituições de ensino superior. Tivemos casos de limitações e intimidações de atividades acadêmicas realizadas em nossos campi.

É preciso vencer Bolsonaro para continuarmos honrando a confiança de todos na universidade pública, atestando a sua excelência com os resultados obtidos nos indicadores de pesquisa do Brasil e do exterior. É preciso vencer Bolsonaro para que se continuem aparecendo faixas penduradas em fachadas de casas de regiões humildes das nossas cidades parabenizando seus filhos e filhas por entrarem em uma das melhores universidades do país. E é preciso vencer Bolsonaro para que, depois, estas mesmas famílias possam pregar na parede as fotos de formatura de médicos, advogados, engenheiros, matemáticos, pedagogos e tantas outras profissões. O investimento e a valorização de universidades públicas é um imperativo para um país mais justo, civilizado, democrático, próspero e sustentável. Queremos continuar o nosso esforço de trazer ciência, conhecimento e cultura para o nosso Estado. Precisamos do seu apoio. Domingo, vote pela universidade pública. Diante do que está posto, domingo, vote 13. 

Notas

[1] UFRGS em números, acessado em 27/11/2022. 

[2] UFRGS em números, acessado em 27/11/2022.

[3] ANDIFES/FONAPRACE V Pesquisa Nacional de Perfil Socioeconômico e Cultural dos (as) Graduandos (as) das IFES – 2018. Brasília, 2019.

[4] Ver a reportagem “A diáspora” de Herton Escobar na piauí (ed. 181 outubro) (acessado em 26 de outubro de 2022). Dentre os diversos casos relatados na reportagem, o êxodo de pesquisadores de um grupo de pesquisa da UFRGS recebe bastante destaque. 

[5] Antônio Gois “Perfil de ensino superior privado no Brasil é destoante da média da OCDE” O Globo (acessado em 26 de outubro de 2022).

[6] Dados obtidos no site: https://gpseducation.oecd.org/revieweducationpolicies/#!node=41678&filter=all (acessado em 26 de outubro de 2022). Clicar em “access & participation”

[7] Reportagem publicada em Zero Hora: (acessado em 26 de outubro de 2022).

[8] Ver reportagem de Luigi Mazza na revista piauí, Edição 179, Agosto 202, “O Apagão”, (acessado em 26/07/2022)

[9] ANDIFES/FONAPRACE V Pesquisa Nacional de Perfil Socioeconômico e Cultural dos (as) Graduandos (as) das IFES – 2018. Brasília, 2019. 

[10] Andrade, R. O. “Expansão do ensino superior teve impacto tangível nas realidades locais, mas ainda enfrenta obstáculos para se consolidar”. Revista Fapesp: Edição 320 out. 2022.  (acessado em 26 outubro de 2022). Os dados sobre o Rio Grande do Sul presentes nesta reportagem foram retirados do artigo de autoria de pesquisadores da Economia da UFRGS: Silva, Iago Luiz da; Tatsch, Ana Lúcia; Ruffoni, Janaína “A Política de expansão do ensino superior e técnico no Rio Grande do Sul e suas contribuições para o fortalecimento do sistema de inovação gaúcho” In: Macedo, Fernando Cezar de; Monteiro Neto, Aristides; Vieira, Danilo Jorge (orgs.) Universidade e território: ensino superior e desenvolvimento regional no Brasil do século XXI. Brasília: IPEA, 2022. Registro meu agradecimento ao prof.Emerson Alessandro Giumbelli pela indicação desta reportagem.  

[11] Para aqueles descrentes em relação a estes números:  A distância nos resultados da consulta à universidade também foi enorme, atingindo em relação à somatória dos votos das chapas concorrentes as seguintes proporções: 5 vezes menos entre os professores; mais de sete vezes menos entre os técnico-administrativos; e mais de 8 vezes menos entre os estudantes (. São diferenças verdadeiramente abissais.

[12] Uma indicação sustentada, vale lembrar, pelo mesmo político que declarou estudantes de Santa Maria mereciam ser “queimados vivos

[13] O organizador do relatório justificou a inclusão e o destaque ao Brasil argumentando que, por mais que o país não apresentasse um quadro tão grave quanto aquele visto em outros países mundo afora, tratava-se de conferir atenção para uma novidade e eventualmente uma tendência. Para mais dados a respeito de ataques à liberdade acadêmica, vale conferir as publicações do LAUT  .

(*) Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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