Opinião
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25 de maio de 2024
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15:13

Da pandemia à enchente (por Jorge Barcellos)

Foto: Isabelle Rieger/Sul21
Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Jorge Barcellos (*)

“O passado é mais terrível que o presente”
Série coreana O Mito de Sísifo, episódio 10  

Será?…

Fomos, num curto espaço de tempo, atingidos pelo colapso. À pandemia dos anos 2020-22 seguiu-se a enchente de 2024. Em ambos, passamos do lockdown que produziu a o esvaziamento das ruas à enchente que fez nascer os novos campos de refugiados no seio das cidades. Em ambos, a mesma sensação de sufocamento provocado pelos efeitos da acumulação financeira e desejo de crescimento infinito, pelo fato de que para nossas autoridades é impossível pensar em viver fora da axiomática do capital.  Tanto como na pandemia, a enchente interrompe radicalmente fluxos de pessoas, aviões e dinheiro, forçando milhares de pessoas ao isolamento. Diz Franco Berardi em Extremo (UBU, 2020) “Tudo parou, ou quase tudo, agora é uma questão de reiniciar o processo, mas de acordo com um princípio diferente. E se decidirmos trabalhar apenas o necessário para produzir o que é útil? E se dermos renda a todos, independente do tempo de trabalho?” Tanto a pandemia como a enchente têm como característica principal a suspensão do tempo e por isso podem ajudar a criar um novo futuro.

Como na pandemia, ainda que milhares de cidadãos tenham parado suas atividades, outros milhares foram obrigados a continuar com sua rotina pelo papel que desempenham na sociedade. Na enchente, nem todas as regiões foram atingidas igualmente. Mesmo Porto Alegre, conviveram regiões atingidas e alagadas com outras nem tanto, isoladas pela geografia do lugar. Olhando o mapa do século XIX e XX, o Guaíba retomou exatamente aquilo que lhe foi tirado por inúmeros aterramentos, nem menos, nem mais. Estamos num momento de redução lenta e gradual, com o governo estadual anunciando as primeiras medidas de reconstrução. Primeira lição: respeitar na expansão os limites dados pela natureza.

Aos poucos iremos nos dar conta que o problema está apenas começando. Primeiro porque o drama dos desabrigados está longe de se resolver com a criação das quatro cidades provisórias. Como na pandemia, a enchente condena ao confinamento em ondas sucessivas, não de países inteiros, mas de populações urbanas atingidas pelas cheias. Nas áreas alagadas, como na pandemia, temos medo do contágio e das doenças que o contato com estas regiões alagadas possa causar. No centro de Porto Alegre, sem água e sem luz, é como se os cidadãos estivessem em quarentena.  Viajar pelo estado na enchente é tão difícil e arriscado como foi quando da pandemia. As autoridades insistem: se não for urgente, fique em casa! Segunda lição: o problema só começa quando termina. 

Voltaremos à normalidade? A economia está beirando o colapso nas cidades atingidas. Cidades não existem mais. O governo luta para a preservação dos postos de trabalho, mas o desemprego está à vista. A enchente gaúcha é mais uma tragédia que se soma aos incêndios da Austrália, da Amazônia, da Califórnia e do Pantanal; os nossos refugiados acompanham os refugiados do mundo que migram devido à crise do meio ambiente como na Turquia, no Paquistão ou em Uganda. O governo estadual e municipal já contratou os serviços da consultoria Alvarez & Marsal conhecida por favorecer interesses privados e minimizar responsabilidades dos poderosos frente às tragédias. Para superar a catástrofe, diz Berardi, “necessitamos hoje do desenvolvimento de pesquisas que tenham autonomia em relação aos interesses das corporações”. Terceira lição: não serão consultorias privadas e comprometidas com interesses econômicos e de seus contratantes que terão sucesso em resolver os problemas da enchente. 

Com a enchente, multiplicaram-se as formas de solidariedade social. É verdade que de todo o lado vimos pequenos empresários colaborar no socorro às vítimas. Se conseguirmos manter esse espirito consciente no futuro, se conseguirmos avançar para modificar o modo como usamos nossas tecnologias de produção, de como produzimos sem afetar o meio ambiente, de como ocupamos o espaço urbano, então teremos uma chance de ultrapassar a tragédia e prosseguir. Se pudermos nos emancipar do domínio do capital, o que quase conseguimos com a pandemia, então teremos enfim a humanidade como valor compartilhado. Pois o que aconteceu no Rio Grande do Sul se conecta ao que vemos no mundo que vai do derretimento das geleiras à invasão de gafanhotos na África. Depois do terror sanitário imposto pela pandemia, enfim chegamos ao terror climático imposto pela enchente. Quarta lição: a saída da crise está no social, nunca no capital. 

Enquanto escrevo, há cerca de mais de 160 mortos da enchente.  A visão aérea propiciada pelo Globocop, outro nome que já remete ao clima de cinema catástrofe, de amplos territórios de Sarandi e Canoas sob as águas, é a imagem daquele futuro que mais tememos e que Berardi enuncia como a pauta da extinção “a extinção está em pauta e que não há outra maneira de evitar essa perspectiva senão pela igualdade econômica radical, pela liberdade cultural, pela lentidão de movimentos e pela velocidade de pensamentos”. Para Berardi, só há uma solução possível: comunismo ou extinção. 

Curiosamente, do comunismo, há sinais no ar. Os empresários já estão dando um passo nesse sentido: estão pedindo intervenção do Estado, quer dizer, MAIS estado frente a calamidade e não isenções, coisa que nunca fizeram antes! Como se sabe, é exatamente assim que começa o momento anterior do comunismo! A geração de Berardi, a mesma da revista Socialismo ou Barbárie, não conseguiu criar as condições para o socialismo, pois o novo século foi de exploração brutal e precariedade que aqui vimos no processo de uberização promovida pelos capitalistas locais. Será que a nossa experiência de tragédia climática terá alguma chance? O próprio governador, com sua proposta de “cidades temporárias”, um nome bem alinhado aos ideais do South Summith, é o empreendedorismo aplicado aos… campos de refugiados! Bem que poderia incluir, quem sabe, formas de trabalho agrícola onde se estabelecer, e aí, quem sabe, inaugurar nos pampas os… kibutz! Se o primeiro colapso, o sanitário, não foi suficiente para “abrir as portas de nosso amanhã”, quem sabe o segundo colapso, o climático, o possa fazê-lo. Quinta lição: não perder a esperança de que outro mundo é possível.  

As cidades temporárias realmente podem ser assustadoras. Já podemos imaginar cenários de violência como vimos nos mais inocentes abrigos da capital. No mundo dos políticos mestres das gambiaras, que são capazes de trocar motores entre estações de tratamento como se fossem fusíveis de um carro, não demorará muito  tempo para levar os totens de segurança instalados pelo prefeito na capital para as cidades temporárias. Aí, cada cidadão ameaçado, irá tocar no totem como em uma brincadeira de ferrolho!.”Yes!, Nos temos distopias, tchê!” Berardi diz que então é melhor ter sido eliminado pela catástrofe do que testemunhar impotente a violência do capital e arrogância das autoridades de plantão. 

É mais uma vez, como na pandemia, como vivemos uma distopia. Ela substitui os homens de macacão branco por outros de macacão azul. Os primeiros, com suas pistolas-termômetro verificavam na pandemia a temperatura corporal, substituídos pelos segundos com seus equipamentos que retiram água de nossas ruas e bairros. Estes já são habitados pelo silêncio que existe tanto na pandemia como na enchente, onde escolas fecharam e o turismo foi a pique. Berardi fala dessa desaceleração que a pandemia provoca, imitada pela enchente, mas a diferença é que, diferente da pandemia, onde fomos obrigados a abandonar lugares lotados como o aeroporto, na enchente fomos obrigados a criar novos lugares lotados, os abrigos. 

Tanto o vírus como a enchente fogem a nossa compreensão.  Não sabíamos a evolução do vírus como não sabemos o tempo que vai levar o rio para baixar. E se vierem mais chuvas? A previsão do tempo é essa certeza rodeada de incertezas, ela prevê o tempo para de vez enquanto errar. Uma enchente bloqueia o funcionamento da economia porque retira a força de trabalho dela. Perguntamo-nos quanto tempo isso irá durar, quanto tempo levará a reconstrução do estado e das cidades, mas e se o tempo piorar daqui para diante? Os cientistas dizem que tais episódios, com o caos climático se tornarão mais frequentes. E, de fato, as últimas enchentes foram em setembro e novembro passado. Como não nos demos conta? A resposta fica na conta das autoridades neoliberais de plantão. Ou será que tudo ainda é parte da axiomática do capital, o fato de que enchentes como essa tem o potencial ambíguo de POTENCIALIZAR o capital, pela aceleração econômica que provocam – vocês conseguem imaginar que os mesmos móveis que foram colocados no lixo deverão ser readquiridos ali adiante? Vocês se deram conta que os proprietários de casas destruídas terão de voltar aos bancos – sim, sempre eles, os abutres de plantão – para novos financiamento? É só olhar o que fez a Caixa Econômica Federal, de Lula, em comparação com o Banrisul, de Eduardo Leite: o primeiro, quanto aos financiamentos, empurrou as parcelas para adiante; o segundo, propõe refinanciar. Este é o banco dos gaúchos, tchê! Mas a tragédia também enfraquece o capital porque, ao paralisar todas as relações sociais, ele também paralisa as relações econômicas. 

Agora, mais uma vez, o capitalismo sobrevive. Afinal, ele é axiomático, isto é, atua com base na premissa da sua necessidade de crescimento e acumulação. Suas crises são motivo de mais rendimento. A reconstrução das cidades, de agora em diante, será o novo negócio. Por isso para as autoridades, é imperativo que fique na mão de quem realmente entende do assunto, de tirar lucro da tragédia, e não com as universidades e pesquisadores locais. Daí que ambos, governo do estado e município, contratam a consultoria que é conhecida por reduzir responsabilidades dos responsáveis, reduzir indenizações cabíveis. A primeira coisa que o capital faz nossos governantes fazer é duplicar a aposta: nada de manutenção com parafusos e borrachas nas bombas e comportas, nada de usar imóveis vazios públicos, quartos de hotéis para resolver o problema dos desabrigados. É preciso duplicar, fazer novas casas de bombas, fazer novas cidades. Além de promover um gasto infinitamente maior que os capitalistas agradecem, a criação de novas cidades, faz com que a cidade, o verdadeiro gueto da população mais pobre atingida (Sarandi e outros) se some as quatro cidades que serão nossos abrigos de refugiados; para depois então, como novo investimento, refazer as cidades. Refazer não, isso seria apenas reformar. Reconstruir, daí é preciso mudar de lugar tudo e a todos. Porque não investir na barreira de contenção, nas estratégias que a ciência, a partir do estudo da natureza, os cientistas mostram como alternativa para a proteção das cidades? Porque elas implicam em negação dos investimentos de uso do solo, como a Fazenda do Arado. É preciso que voltemos a condição de suposta normalidade para que os negócios possam voltar de onde pararam: há lançamentos a serem feitos na orla, junto ao Barra Shopping. E elas não podem parar. Mas não se preocupem: eles terão andares suficientes para sobreviver a qualquer nova enchente – ao menos para os moradores que pagarem a diferença para os andares mais altos…

O governador diz que as chuvas foram imprevistas, que surpreendeu as autoridades. Mas, ao contrário, o imprevisto era justamente o que os cientistas estavam justamente esperando, a implosão, como alerta Berardi “o organismo superexcitado da humanidade, após décadas de aceleração e frenesi, após alguns meses de convulsões gritantes e sem perspectiva, fechado num túnel cheio de raiva, gritos e fumaça, é enfim atingido pelo colapso”. Na axiomática do capital que alimenta nossos governantes, a solidariedade das massas é apenas o subterfúgio para encobrir o desejo capitalista de tornar a tragédia objeto das grandes corporações. Estamos todos unidos pelo RS, mas por debaixo dos panos…Não se duvida que, após a tragédia, finalizem os processos de privatização do DMAE. Berardi afirma que não estamos preparados para pensar na estagnação de longo prazo. Mas o contrário também é evidente “não estamos preparados para pensar a… partilha”. O que isso significa? Sexta-lição: que precisaremos pensar a solidariedade de longo prazo.

A enchente põe em relevo nossas escolhas. Afetada pela enchente, temos de escolher o que salvar. Uma amiga minha escolheu suas memórias, seus velhos cadernos de fotos da faculdade. Ali estava o testemunho de uma geração de estudantes dos anos 80, envolvidas em manifestações de rua, com seus ideais de juventude. Era a minha geração. Eu me vi com vinte anos, ainda na era sem internet e sem celular. Eram os anos 80 de minha turma do curso de história da UFRGS.  Para mim foi um choque psicótico-climático: não apenas para constatar o estágio do capitalismo local, mas também para as gerações que aqui compartilham a crise do meio ambiente. Aguardo da iniciativa privada, ansiosamente, a propaganda dos empreendimentos imobiliários em nossa orla, com suas visões paradisíacas, com seus anúncios de segurança em seus empreendimentos e com, é claro, fotos de pôr-do-sol.  Aguardo da iniciativa pública a resposta à pergunta: porque tanta… gambiarra? Consertos improvisados, uso de peças entre os diversos equipamentos de saneamento. Porque tivemos de importar bombas para tirar água de outros estados quando o DMAE tinha mais de 400 milhões em caixa? Ou diria, em caixa não, aplicados no …mercado financeiro. Sempre ele… Espero que os cidadãos, conscientes de que a responsabilidade desta crise é do poder público também, saibam escolher melhor seus governantes na próxima eleição e, de uma vez por todas, saiam das redes sociais para as ruas, de onde nunca deveriam ter saído para exigir seus direitos. 

A crise não vem agora do sistema econômico como em 2008, ela vem do mundo natural. É uma forma dela nos impor limites, nos dar uma resposta. Os rios disseram um basta a exploração econômica e produziram a enchente; os equipamentos públicos deram um basta a falta de manutenção e falharam; as barreiras deram um basta a falta de investimento e romperam. Nossa infraestrutura decidiu por nós, decidiu por nos parar. Mas, ainda assim, ela é um sintoma dos efeitos das políticas neoliberais, do desmonte da máquina pública ao desmonte da política ambiental. Berardi fala do colapso do corpo com o vírus, eu falo do colapso do mundo ao nosso redor que adoeceu com a enchente. Mas não se pode culpar o neoliberalismo por tudo: nós também, como sociedade, adoecemos politicamente. Nossa vontade política de participação cedeu às redes sociais, aos apelos dos políticos populistas de direita de plantão, e como diz Berardi, “entrou numa fase de profunda passivação”. Que a população esteja pichando nos móveis que abandona em plena Rua dos Andradas para descarte as expressões “É culpa do Melo”, “É culpa do Leite”, é um sintoma de seu cansaço de tudo isso. Ninguém pode viver com a humilhação de não ter luz, não ter água, de perder tudo.  

A onipotência dos políticos neoliberais será cobrada por uma população deprimida e com raiva nas próximas eleições. E nisso, não adiantará a blindagem dos meios de comunicação do establishment ou a tentativa de as prorrogar. O meio ambiente está dando as cartas.

(*) Jorge Barcellos Historiador, Doutor em Educação, autor de O Êxtase Neoliberal (Editora Clube dos Autores).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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