Opinião
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20 de outubro de 2022
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13:26

A agenda do autoritarismo total de Bolsonaro (por Marcelo Duarte)

Foto: Joana Berwanger/Su21
Foto: Joana Berwanger/Su21

Marcelo Duarte (*)

O bolsonarismo tem uma agenda definida para o Brasil. Ela foi construída, gradativamente, por uma direita conservadora, por uma extrema-direita, por um nacionalismo cristão reacionário e pelo pós-fascismo tupiniquim. Não há geração espontânea em política.

No cenário internacional, a ideia é aumentar nosso distanciamento da dita agenda globalista, definida pelo comunismo internacional – o verdadeiro nome da esquerda liberal e progressista. ONGs e organismos multilaterais reconhecidos pelo direito internacional, meros fantoches da referida agenda, devem, gradativamente, ceder espaço a bilateralismos alinhados ao bolsonarismo. Nosso constrangimento e isolamento perante a ONU deve aumentar, diminuindo nossa influência, credibilidade e respeito internacionais, o que fatalmente terá implicações em negociações bilaterais com países e organismos sérios.

Internamente, sinais foram dados nesse primeiro mandato do bolsonarismo.

Na educação, tudo indica que o velho projeto liberal de privatização das universidades públicas começará a tomar forma. Por não enxergar valor no ensino, na pesquisa e na extensão, um eventual segundo governo Bolsonaro tende a diminuir a dotação orçamentária destinada ao ensino superior, o que atingirá as universidades públicas em cheio e inviabilizará o financiamento estudantil destinado a custear a formação superior em universidades privadas – as quais, juntamente com as IES públicas, cumpriram um papel fundamental na diminuição da desigualdade social durante os governos petistas, através das políticas públicas de cotas raciais e sociais e de distribuição de bolsas para projetos como o Ciência sem Fronteiras.

No mais, a militarização do ensino e a desumanização do processo de formação educacional, voltados à hierarquização, à disciplina e à anulação do pensamento crítico, tendem a ganhar um espaço cada vez maior. A formação de professores tende ao patrulhamento ideológico de extrema-direita, que inibe a formação da reflexão no espaço onde ela deveria ser mais valorizada. Discussões sobre gênero, sexualidade, direitos humanos e patriarcalismo tendem a ser sufocadas.

Na economia, a submissão da produção nacional ao atual estágio de desenvolvimento das forças produtivas (capital e trabalho) e das relações de produção (dominação, pela ideologia, e exploração, pela mais valia) do modo de produção capitalista tende a ser acentuada. Ganharão espaço o estímulo à grilagem e à invasão de territórios indígenas demarcados, empecilhos à mineração e à expansão da fronteira agrícola e pecuária, produtores de commodities – o que aumentará nossa dependência do mercado internacional e nossa exposição às crises cíclicas de produção e de consumo do capitalismo.

A importação, por sua vez, tende a continuar cara – a política cambial adotada pelo bolsonarismo favoreceu, principalmente, o mercado agroexportador –, o que dificultará o desenvolvimento de novas tecnologias voltadas à indústria nacional e inflacionará o mercado interno de bens de consumo. Ficará mais caro produzir e mais difícil vender.

A ausência de estímulo à pesquisa científica tende a atrasar o ingresso brasileiro no mercado de tecnologia da informação, cada vez mais dependente do que é produzido no exterior.

Saúde, assistência social e previdência públicas sofrerão novos ataques. O Sistema Único de Saúde (SUS), já cambaleante, tende a um maior sucateamento, o que exporá o Brasil a crises cíclicas na área – a recusa sistemática do bolsonarismo à vacinação em massa durante a recente pandemia é só um dos exemplos de tais crises: o Brasil está diminuindo sua cobertura vacinal relativamente a uma série de outras doenças por conta do desmonte da saúde pública levado a efeito nos últimos 4 anos. Políticas públicas de Estado, que demoraram décadas para serem solidificadas por sucessivos governos democráticos, estão sendo desconstruídas a passos largos. A saúde, assim como a educação, é mercadoria aos olhos de políticas neoliberais.

Tudo isso, porém – e haveria bem mais a ser dito –, não passa da ponta de um iceberg.

Com o bolsonarismo, a sobrevivência da Constituição e da democracia estão em jogo. Direitos sociais já amalgamados à Constituição tendem a ser desmontados. a reforma trabalhista do golpista Michel Temer, MDB, foi só um prenúncio desse processo. A futura conformação do Congresso Nacional tende a ser mais tolerante a projetos de flexibilização de direitos trabalhistas consagrados, como o 13º salário e as férias, que só favorecem ao capital.

A administração pública tende a ser reformada em nome de um estado mínimo – mínimo para a cidadania, máximo para o capital. O funcionalismo público, visto por tal lógica como mero entrave burocrático a uma gestão eficiente – sempre aquela similar à adotada pela iniciativa privada, como se gerenciar a produção de papel higiênico tivesse alguma relação com, p. ex., a complexidade da gestão da saúde de milhões de pessoas –, verá parcela significativa de seus direitos serem suprimidos pelo interesse de um capital submisso a uma lógica de financeirização e concentração.

A harmonia entre os poderes e sua independência tendem a ser atacadas. Isso já é bastante visível na relação entre Executivo e Legislativo – transformado, esse último, em mero despachante dos interesses daquele, por conta do antirrepublicano orçamento secreto, pelo qual obscuras emendas parlamentares ao orçamento são executadas pelo bolsonarismo em troca do apoio incondicional do Congresso.

O alvo preferencial, contudo, é o Judiciário – sobretudo o Supremo Tribunal Federal (STF). O respeito às regras do jogo exigido pelo STF – nada além de sua missão definida pela Constituição – tem se mostrado uma trincheira de resistência ao bolsonarismo, que, tal como uma criança perversa, não admite limites ao seu gozo.

O aumento do número de ministros integrantes da corte e a possibilidade de derrubada, pelo Congresso, de suas decisões, são somente o primeiro passo em direção ao autoritarismo total visualizado pelo bolsonarismo, projeto de poder que objetiva submeter a democracia e a Constituição aos valores por ele representados – uma síntese entre os valores da direita conservadora, da extrema-direita, do nacionalismo cristão e do pós-fascismo.

O autoritarismo total do bolsonarismo é um projeto de desconstrução do Estado de Direito Constitucional Democrático. Solapa as liberdades individuais de consciência, de crença e de ir e vir, conquistas do liberalismo clássico iluminista, pois só é livre, no bolsonarismo, quem professa, preferencialmente armado, os valores do cristianismo branco e patriarcal.

Aniquila direitos civis e políticos, uma vez que só é cidadão aquele que adere, incondicionalmente, ao culto de sua personalidade perversa, vestindo verde e amarelo e rindo, feito um boboca, de suas piadas homofóbicas, machistas e misóginas. Atropela direitos sociais, posto que só é trabalhador, no bolsonarismo, aquele que, por mérito próprio e sem depender do assistencialismo do governo, destinado a preguiçosos, empreende e emprega.

Destrói a fraternidade, cimento da sociabilidade e da solidariedade social, já que sentimentos são coisa de maricas, e machos-alfa não podem fraquejar, por isso rir da morte e do sofrimento alheio é tão leve e solto. Pisoteia sobre a relva em cinzas, sobre árvores em brasas e sobre corpos mutilados de ambientalistas e indígenas, pois o meio-ambiente é estorvo a atravancar o caminho da produção destinada a virar ração de porcos na china ou peça de carne a dois mil reais o quilo.

Implode a democracia, uma vez que regras só são regras quando suas regras, que instituições só são instituições quando ajoelhadas diante de seu gozo doentio e patético, e que a vontade popular só é soberana, justa e correta quando lhe escolhe. Arrasa a Constituição, pois é seu e de mais ninguém o direito à última palavra sobre o Direito.

Não se trata, portanto, somente de se derrotar um projeto político. Trata-se, sobretudo, da manutenção dos alicerces mínimos de um projeto civilizatório, cujos primeiros – tímidos, mas firmes – passos, já foram dados. Nossa Constituição os declara e os assegura, e ninguém e nenhum projeto estão acima dela.

É por isso e por nossas dívidas históricas e morais que estamos a lutar neste segundo turno. Devemos aos negros que escravizamos, vítimas de nosso racismo institucional e da desigualdade social que nasceu com nossa República e nela se enraizou; devemos às vítimas de uma polícia corrupta, violenta e autorizada pela necropolítica de Estado; devemos às comunidades oprimidas pelo tráfico e pelas milícias empoderadas pela ausência de Estado; devemos aos homossexuais ridicularizados, espancados e mortos, bem como às pessoas com deficiência, aos indígenas dizimados e à pálida sombra que hoje deles resta; devemos às mulheres violentadas e oprimidas pelo machismo, pela misoginia e pelo patriarcalismo; às crianças e adolescentes e aos miseráveis cujo prato de comida anda cada vez mais vazio. Devemos, fundamentalmente, aos mortos pelo sadismo de um genocida perverso e corrupto.

Nossa tarefa civilizacional não está completa, e só num Estado de Direito Constitucional Democrático podemos pagá-las. O lugar do bolsonarismo é na lata de lixo da história. Nós, os verdadeiros democratas, vamos vencer estas eleições.

(*) Jornalista

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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