Opinião
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13 de setembro de 2022
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07:00

Sobre dragões, mulheres e homens (Coluna da APPOA)

Personagens de House of the Dragon (Foto: Divulgação/HBO)
Personagens de House of the Dragon (Foto: Divulgação/HBO)

Gerson Smiech Pinho (*)

“Os homens prefeririam colocar fogo no reino a botar uma mulher no Trono de Ferro”. Esta sentença condensa um dos argumentos centrais da recém-estreada série House of the Dragon, derivada de Game of Thrones, uma das mais exitosas produções do gênero nos últimos anos. A afirmação acima foi proferida por uma das personagens do seriado, Rhaenys Targaryen, alguns anos depois de ter sido desbancada da sucessão real por Viserys, um primo mais jovem que ela. Por ser homem, Viserys foi privilegiado e escolhido para ser coroado, ainda que Rhaenys fosse a descendente mais velha do rei e, por esta razão, a primeira na linha de sucessão. Deixada de lado como herdeira do trono pelo fato de ser mulher, Rhaenys ficou conhecida como “A Rainha Que Nunca Foi”.

Após transcorridos alguns episódios, tudo indica que House of the Dragon está fazendo jus ao posto de sequência de Game of Thrones. Assim como sua antecessora, a nova série tem se mostrado repleta de conspirações familiares, intrigas pelo poder, batalhas épicas, além de contar com a participação de um bom número de majestosos e imponentes dragões. Com todos esses ingredientes, a obra vem mostrando-se muito bem-sucedida na continuidade do legado deixado pela produção que a precedeu. Por sinal, legado é um termo central para acompanhar House of the Dragon, já que a trama gira em torno da possibilidade (ou impossibilidade) de uma mulher ser reconhecida como herdeira do trono.

Ainda que, no início da série, Viserys tenha prevalecido sobre sua prima mais velha ao se tornar rei, não tardou a encontrar um impasse semelhante àquele do momento da sua coroação. Isso porque não gerou nenhum descendente homem em seu primeiro casamento e, por esta razão, nomeou sua única filha, Rhaenyra, como sua sucessora. Dessa forma, o embate entre a tradição que até então vigorava e a possibilidade de uma nova ordem que permitisse a uma mulher subir diretamente ao trono é reacendido.

Com frequência, as narrativas ficcionais presentes em filmes e séries revelam elementos subliminares ao ordenamento de nossas vidas, ao estabelecimento das relações de poder e dos laços sociais. Assim, mesmo que os acontecimentos que se desdobram em House of the Dragon sejam ambientados em um contexto medieval, não deixam de evocar temas que ainda incidem sobre a organização de nossos pontos de vista acerca do mundo, como a atribuição de lugares e papéis a homens e mulheres ou, então, a identificação da ocupação de espaços de poder com atributos masculinos e viris. 

Por vezes, em nosso cotidiano, tal associação chega de forma caricatural e grotesca, mesmo sem contar com a presença de espadas, lanças ou dragões cuspidores de fogo. Por exemplo, quando alguém se autointitula como “imbrochável”, faz ataques diretos às mulheres ou cultiva o gosto em fazer gestos imitando armas ou em exibi-las em público. Ao mesmo tempo que tais cenas encampam a falaciosa pretensão de uma potência ilimitada, contém também uma face bastante risível, já que buscam encobrir a fragilidade de quem as protagoniza. 

A necessidade de se afirmar com base em signos de virilidade pode ser associada ao fato de que o poder dos homens já não é mais hegemônico como foi outrora. Talvez em uma tentativa de supervalorizar elementos que já não tem mais o mesmo lugar nem a mesma significação social. Isso porque os lugares tradicionalmente considerados masculinos e femininos coincidem, cada vez menos, com os lugares onde estão os homens e as mulheres hoje em dia. Ao longo do último século, as mulheres ingressaram intensivamente no campo político, no mercado de trabalho, protagonizando uma crescente flexibilização de lugares.

No contexto medieval no qual viveu, a princesa Rhaenyra precisou se rebelar com o lugar que lhe era atribuído por ser mulher, enquanto objeto de troca e de negociação política entre os homens. Hoje, ainda que existam resquícios daquele período, a mobilidade própria das sociedades democráticas contemporâneas tem aberto outras perspectivas. 

(*) Psicanalista, membro da APPOA e do Centro Lydia Coriat

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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