Opinião
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23 de maio de 2024
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16:33

O governo Lula e o RS (por André Moreira Cunha, Luiza Peruffo e Alessandro Miebach)

15.05.2024 - Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, durante Visita a abrigo em São Leopoldo - RS.


Foto: Ricardo Stuckert / PR
15.05.2024 - Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, durante Visita a abrigo em São Leopoldo - RS.

 Foto: Ricardo Stuckert / PR

André Moreira Cunha, Luiza Peruffo e Alessandro Donadio Miebach (*)

São raros os momentos históricos em que é possível ver estadistas em ação. Estes são forjados nos momentos mais desafiadores. É quase impossível que tal reconhecimento ocorra no calor dos eventos e por seus contemporâneos. Somente a passagem do tempo fornece as condições para que as paixões políticas sejam temperadas por maior objetividade. Nos últimos anos, crises financeiras, como a de 2007-2009, pandemias, aumento nas desigualdades sociais e econômicas, ataques ao Estado Democrático de Direito, polarização social, guerras e a crise climática, para citar alguns desafios, estão pressionando as sociedades, as capacidades estatais e as lideranças nas esferas pública e privada.  

Em 2017, o relatório “Paradoxos do Progresso”, elaborado pelo Conselho Nacional de Inteligência dos Estados Unidos já alertava que: “A capacidade das lideranças gerirem tensões será intensamente testada … terão menos espaço para implementar políticas difíceis e menos tempo para mostrar resultados.”. As democracias liberais seguiriam sob tensão; e os radicalismos que emergiram nas últimas décadas se organizariam, ainda mais, para capturar e canalizar as frustrações e o desespero das pessoas que ficarem para trás a cada nova crise. 

Em meio ao impactante choque climático vivido no Rio Grande do Sul, os cenários que se desenham são desafiadores. A reconstrução não será simples ou rápida. Os problemas se tornarão cada vez mais complexos e as lideranças políticas, habituadas aos exercícios de ilusionismo e procrastinação, serão testadas. Ao reconstituir o que estamos vivendo, cientistas sociais do futuro observarão que, assim que ficou claro que o Brasil estava diante do que poderia ser a maior crise climática de sua história (até então), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva não hesitou em organizar uma comitiva, com ampla representação dos Três Poderes, para sobrevoar o estado. Seu governo atuou rapidez e largueza política. Desde então, não faltaram anúncios de medidas de apoio, bem como a mobilização de pessoal, de estruturas governamentais e de recursos estratégicos para o enfrentamento dos aspectos mais urgentes da crise em curso. O Congresso, por sua vez, foi na mesma direção e suas lideranças merecem reconhecimento pelo apoio e a agilidade na aprovação das iniciativas do governo federal.

O governo federal criou o portal “Unidos pelo RS”, o qual registra ações nas mais diversas áreas. Em 21 de maio, o principal indicador financeiro indicava R$ 60,7 bilhões em “investimentos”, o que equivale a 0,6% do PIB do país em 2023. Tais números merecem algumas qualificações. Assim, por exemplo, dos R$ 50,9 bilhões de um conjunto de doze medidas anunciadas em 09 de maio, o dinheiro efetivamente “novo”, com “impacto primário”, nos termos do governo, é de R$ 7,7 bilhões, dos quais cerca de R$ 6 bilhões foram direcionados para capitalizar Fundos Garantidores de Crédito. Esta medida, por sua vez, cria a expectativa de que os bancos terão condições de emprestar R$ 30 bilhões em novos financiamentos no RS. 

Trata-se, portanto, de uma possibilidade de acesso a recursos, a qual ainda dependerá de disposição dos bancos realizarem novas operações de crédito e das pessoas físicas e jurídicas terem o desejo e a possibilidade em assumir novas dívidas. Tal crédito não é “investimento” no sentido macroeconômico do termo, pois não necessariamente se traduzirá em gastos para reconstituir o estoque de capital comprometido pela destruição em larga escala. Estes potenciais novos financiamentos, muito provavelmente se direcionarão às necessidades mais imediatas de recomposição do caixa de empresas e famílias, que já estão endividados e perderam patrimônio. Metade dos “investimentos” reportados no portal do governo federal não representa a difícil temática da “reconstrução” – pontes, estradas, moradias, fábricas, fontes de energias renováveis, redes de distribuição, manejo de bacias hidrográficas, recuperação de biomas estratégicos etc. Por isso mesmo, novas medidas deverão ser tomadas no futuro.

Enquanto estadista, o presidente Lula assumiu importante protagonismo no enfrentamento dos impactos iniciais desta tragédia humanitária. Já a disputa pelos rumos da reconstrução do estado – e pela introdução de uma agenda nacional robusta de resiliência climática – está só começando. Lula, o político, tem diante de si uma sociedade que segue dividida e um Parlamento hostil à “redistribuição de ganhadores e perdedores” das políticas públicas. Não será trivial criar, de fato, uma “transição climática justa” em uma das sociedades mais desiguais do planeta.

BRDE e FUNDOSUL

Em entrevista recente, Nelson Barbosa, Diretor de Planejamento do BNDES, e um dos mais destacados economistas de sua geração, sugere a necessidade da constituição de um fundo especial para a reconstrução do RS. Sinaliza que o Fundo do Clima não tem recursos suficientes para atender a demanda potencial de projetos na área ambiental: informa haver um saldo de R$ 2 bilhões diante de consultas para novas operações de R$ 30 bilhões. A Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS fez sugestão convergente no dia 08/05, porém com uma diferença: consideramos mais adequado que se estruture um Fundo para a Mitigação de Riscos Climáticos direcionados para a Região Sul, a ser operado pelo Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul (BRDE). Esta instituição, criada em 1961, atua em quatro estados (RS, SC, PR e MS) e trabalha em parceria e em moldes similares ao BNDES, ainda que em condições financeiras mais restritivas. 

Os bancos públicos federais têm maior acesso às fontes compulsórias de poupança, que se constituem em uma rede ampla de robusta de instrumentos de funding. Há fundos constitucionais criados pela Constituição Federal de 1988, desenhados para reduzir assimetrias de desenvolvimento com ênfase nas regiões Norte, Centro-Oeste e Nordeste. Tais recursos são geridos e aplicados pelo Banco da Amazônia, o Banco do Brasil e o Banco do Nordeste, respectivamente. O BNDES, por sua vez, tem no Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) a sua principal fonte de funding; e a Caixa Econômica Federal gere e utiliza o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). Em conjunto, tais fundos mobilizam recursos da ordem de R$ 1,4 trilhão, que equivalem a 13% do PIB nacional de 2023 ou cerca de 7% do estoque de capital fixo da economia brasileira.

Não existe nenhum fundo equivalente para a Região Sul. Um instrumento deste tipo seria fundamental para ampliar os esforços em investimentos de longo prazo na região. Antes desta crise, a aplicação de parâmetros internacionais para o Brasil, indicaria a necessidade de algo entre R$ 300 bilhões a R$ 400 bilhões adicionais em inversões, ao ano, para adaptação aos riscos climáticos (3% a 4% do PIB). Para a região de atuação do BRDE, que respondeu por 23% da formação bruta de capital fixo (FBCF) do país na década de 2010, em média, isso implicaria montantes da ordem R$ 66 bilhões a R$ 92 bilhões/ano.

Para atender esta demanda adicional, tanto o BNDES precisará de mais recursos, quanto o BRDE deverá originar, com novas fontes, operações de crédito que viabilizem projetos nos estados mais meridionais do Brasil. Estas e outras opções devem fazer parte do menu de escolhas dos estadistas. 

A Complexa Agenda do Futuro

A Região Sul é particularmente sujeita à recorrência de eventos climáticos extremos. Hoje, a crise está no RS. Amanhã poderá estar em outro estado. Hoje, são enchentes. Amanhã serão ventos fortes ou estiagens mais intensas do que as historicamente registradas. Esta região também se caracteriza por ter experimentado a maior destruição de biomas, especialmente o Pampa e a Mata Atlântica. Nestas regiões, de acordo com dados do INPE, a vegetação natural remanescente representa 34% e 27% das coberturas originais, respectivamente. No conjunto do país, tal parâmetro é de 59%.

Para evitar o cenário da destruição seria fundamental, conforme detalhamos em artigo anterior, recalibrar vários dos instrumentos do governo federal e tornar mais efetiva a utilização de tecnologias já disponíveis. O INPE consegue fazer o monitoramento espacial detalhado das regiões com desmatamento ou com recuperação de biomas. Esta informação deveria fazer parte das políticas de crédito dos bancos públicos e do uso de todos os fundos que financiam empresas e municípios, constitucionais e outros. Pessoas físicas, jurídicas e municípios localizados em regiões com níveis crescentes de desmatamento deveriam ser excluídos de quaisquer modalidades de crédito direcionado, com custos menores. Seriam elegíveis, apenas, para financiamentos com recursos livres e taxas de juros de mercado. Tais diferenciações seriam parte de uma “política verde de financiamento”. O governo federal tem o poder de alterar os parâmetros para o uso do crédito direcionado que, em março de 2024, apresentava financiamentos de R$ 2,4 trilhões ou 41% do saldo total de crédito bancário do país (R$ 5,9 trilhões). 

Para recuperar acesso ao crédito direcionado, aquelas pessoas físicas e jurídicas teriam de se comprometer com a execução de planos imediatos de recuperação de biomas destruídos. O acompanhamento do cumprimento destes planos se daria com o monitoramento por satélite do INPE, de modo a minimizar os riscos de greenwashing. Tratar-se-ia de um indutor em potencial de melhores práticas ambientais, empregos e renda, estabelecendo um circuito virtuoso no qual o crescimento induzido por condicionalidades verdes se disseminaria por outros setores da atividade econômica. As tecnologias derivadas destes investimentos fazem parte daquilo que se domina de “tecnologias de fronteira”, um mercado que pode ultrapassar vendas de US$ 9,5 trilhões em 2030.

No lado dos incentivos positivos, há linhas verdes para crédito, como as geridas pelo BNDES, particularmente via Fundo do Clima. Seria importante ampliar esta rede, tanto no BNDES, quanto pela criação de novos fundos, dentre eles o FUNDOSUL. Este, por sua vez, poderia utilizar recursos originados na tributação verde, na emissão de títulos verdes, nas negociações no mercado de carbono, em espaço fiscal gerado por renegociações de dívida entre União e UFs, na retenção integral de lucros e juros sobre o capital próprio gerado pelos bancos de desenvolvimento, bancos comerciais e agências de fomento controladas pelos entes governamentais, dentre outras fontes. Os depósitos compulsórios dos bancos que captam depósitos poderiam ser mobilizados de distintas formas, como foi feito em crises anteriores, inclusive na pandemia. Atualmente é da ordem de R$ 640 bilhões, dos quais R$ 40 bilhões são originados no RS.  

A tragédia do RS e a sua superação reforçam a necessidade de recuperar as capacidades de indução e de ação por parte do setor público. Isso afetará a distribuição de renda, riqueza e poder, o que está no núcleo dos conflitos nas modernas sociedades de mercado. O desafio do governo federal passará, necessariamente, pela discussão sobre o desenho das regras fiscais e o questionamento das convenções mentais, que seguem contaminadas por parâmetros que estão sendo abandonados nos países centrais. Este será um teste decisivo para todos os governos e lideranças, tanto no setor público, quanto no privado. Suas biografias serão marcadas por aquilo que se fizer (ou não) daqui para frente.

(*) Docentes do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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