Opinião
|
8 de agosto de 2022
|
07:00

O advogado dos direitos humanos (por Carlos Frederico Guazzelli)

Eloar Guazzelli (Arquivo pessoal)
Eloar Guazzelli (Arquivo pessoal)

Carlos Frederico Barcellos Guazzelli (*)

O próximo dia 12 de agosto marcará os cem anos de nascimento de meu pai, Eloar Guazzelli, advogado rio-grandense falecido em 1994, às vésperas de completar 72 anos de idade. Para celebrar a data, seus filhos e filha, noras e sobrinhas, netas e netos, criaram páginas no Facebook e no Instagram (@100anoseloarguazzelli). 

  Nos perfis postados nas plataformas referidas acima, além de uma pequena biografia de Eloar e informações sobre passagens de sua vida, constam fotografias, documentos e registros diversos relacionados a ele – além das manifestações e mensagens que já foram e serão dirigidas às páginas, de parte de pessoas que o conheceram e ao seu trabalho.

Com esta ação, além de comemorar o centenário de uma pessoa querida, pretendemos fazer um gesto político, modesto que seja, mas necessário neste momento, em especial, ao invocar sua luta, como cidadão e advogado, na defesa dos direitos humanos e da democracia – para assim contribuirmos com os atuais esforços da cidadania brasileira, em favor da liberdade contra a ditadura, do livro contra a arma, da civilização contra a barbárie fascista que nos assola.

Merece destaque, nas quase cinco décadas a que se dedicou à advocacia, sua atuação na defesa de presos e perseguidos políticos, que já iniciara antes, desde recém-formado, na década de 1950, mas se acentuou sobremodo após o golpe de estado desfechado em abril de 1964. Desde os primeiros dias da ditadura então instalada, ele defendeu diversas pessoas, alvos de prisões, comissões de inquérito e processos instaurados perante as Justiças Estadual e Militar, devido à sua ligação com o governo ilegitimamente deposto – ou simplesmente por suas ideias – desde militares legalistas, até servidores civis, sindicalistas e profissionais liberais.

No final daquela década, em razão do recrudescimento do caráter repressivo do regime ditatorial, Eloar Guazzelli passou a atuar assiduamente junto à Justiça Militar Federal, que recebera a competência para julgar os “crimes contra a segurança nacional”, definidos em lei especialmente voltada à repressão dos oponentes do regime – reais, potenciais ou imaginários. 

A esta altura, ele já era um profissional conhecido em todo o estado, principalmente por seu trabalho na área criminal, aí incluído o tribunal do júri, tribuna na qual se destacou notavelmente. Mas, certamente, foi sua presença firme, diligente e serena perante as Auditorias Militares federais e o Superior Tribunal Militar, na defesa de centenas de homens e mulheres, vítimas de persecução pelo sistema repressivo político, que o projetou definitivamente no cenário público – num momento em que o governo militar perdia o apoio de segmentos médios da população, em virtude da crise econômica e das violências praticadas por seus agentes, denunciadas externa e internamente.

O prestígio por ele então granjeado, levou-o a aceitar o convite que lhe foi feito, em 1978, para concorrer a Deputado Federal, pela legenda do MDB, o partido de oposição criado pelo próprio regime ditatorial, ao qual era filiado e que, desde a eleição anterior, experimentava crescimento. E de forma até surpreendente, pois nunca antes havia concorrido a cargo eletivo, e tampouco representava setor social específico, ele se elegeu com quase 40.000 votos – que lhe foram dados não apenas por seus camaradas comunistas e trabalhistas, mas igualmente por estudantes universitários e pelos advogados, espalhados por todo o Rio Grande. 

De acordo com seu perfil, bem resumido no lema sob o qual foi eleito – “o advogado dos direitos humanos” – foi destacado pela liderança de seu partido para atuar como titular na Comissão de Segurança Nacional, e como suplente nas Comissões de Constituição e Justiça, e de Trabalho e Legislação Social. Durante seu mandato, integrando a ala partidária mais à esquerda – o grupo chamado de “autênticos”, liderado por Ulysses Guimarães – participou das principais disputas políticas do período: a luta pela anistia, ampla, geral e irrestrita, afinal perdida pelos artifícios criados pelo governo; e também a reforma partidária, que resultou na divisão da sigla oposicionista, que permaneceu com o nome de PMDB, e a criação de novos partidos, como o PDT e o PT.

  Eloar morou neste período em Brasília, com sua esposa, companheira de toda vida, e sem ter uma “base eleitoral” específica à qual visitar regularmente, além de participar da intensa vida parlamentar do final dos anos 1970 e início dos ’80, ele pôde se dedicar ao trabalho das Comissões – de modo particular à luta contra as investidas punitivistas da bancada governista, às quais ajudou a barrar.

Assim é que elaborou importantes pareceres e votos em separado, orientando sua bancada, por exemplo, a enfrentar e derrotar a proposta de emenda constitucional para introduzir a pena de morte na legislação comum; bem como, a arquivar projetos de lei perversos e seletivos, como a diminuição do limite etário da responsabilidade penal, e a identificação criminal indiscriminada da população. 

  Vivia-se então período de grande esvaziamento da atividade propriamente legislativa do Parlamento, com a crescente ampliação do poder da chamada tecno-burocracia, responsável pela introdução da maior parte das políticas públicas, nos mais variados domínios da vida social – restando pouco espaço para proposições relevantes dos representantes eleitos. 

  Diante disso, e atento a uma circunstância política particular, em vez de sugerir medidas fadadas à irrelevância ou ao insucesso, Eloar Guazzelli dedicou-se à revisão ampla e profunda da legislação penal vigente, visando à sua reforma parcial, para adaptá-la aos novos tempos que viriam, com a redemocratização do país. Como resultado, apresentou abrangente projeto de lei, propondo várias alterações na Parte Especial do Código Penal – que inclui os capítulos nos quais se define os crimes e as penas.

O projeto baseava-se em três pilares: a descriminalização de condutas, cuja tipificação criminal não mais se justificava, numa perspectiva contemporânea e democrática; a redução das penas privativas de liberdade previstas para vários tipos penais; ou a sua substituição por outras sanções, restritivas de direito e/ou pecuniárias – devido à reconhecida falência da prisão, como resposta penal capaz de cumprir suas propaladas funções repressiva e ressocializadora.

Eloar descortinou a possibilidade de aprovação das inovações sugeridas, uma vez que fora guindado a Ministro da Justiça, no último governo militar, um deputado mineiro – Ibrahim Abi-Ackel – o qual, malgrado integrasse as hostes arenistas, era advogado criminal e professor de Direito Penal, adepto da ideologia jurídica liberal e simpático, portanto, à reforma do sistema legal repressivo. Isto animou o parlamentar gaúcho em sua ousada iniciativa, a qual se revelou antecipatória de medidas de política criminal que só vieram a ser adotadas anos depois, já no período democrático, sob a influência do chamado “garantismo penal”.

Como se constata, Eloar Guazzelli atuou politicamente, durante décadas, como advogado; e durante o mandato parlamentar que exerceu, continuou agindo como o advogado, que era – buscando o aperfeiçoamento do sistema legal.

Em 1983, retomou sua banca de advocacia, e a exerceu até sua morte, onze anos depois. Malgrado tenha exercido outras e importantes funções, “advogado” era sempre o título com que se apresentava. Mais que exercer uma profissão – o que já não seria, nem constituía desdouro – advogar para ele era praticar um ofício, no sentido histórico, quase medieval do termo: uma atividade a ser exercida de forma artesanal, no cuidado preciso e detalhado de sua técnica, impregnada sempre de apuro estético e direção ética.

É, pois, com muito orgulho que, nós, seus herdeiros, invocamos nestes dias sua figura humana generosa e solidária, e sua vida plena e rica, e convidamos a todas e todos a visitarem as páginas que criamos para homenagear sua memória.

(*) Defensor Público estadual aposentado, Coordenador da Comissão Estadual da Verdade/RS (2012-2014)

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora