Opinião
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21 de agosto de 2022
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11:09

Bolsonaro e a questão da tortura (por Milton Pomar)

Foto: Comissão Nacional da Verdade/Reprodução)
Foto: Comissão Nacional da Verdade/Reprodução)

Milton Pomar (*)

O presidente da República é a favor da Tortura. Já disse e repetiu isso várias vezes, desde a sua primeira entrevista famosa, em 1999, para a TV Bandeirantes, quando declarou, entre outras barbaridades, que durante a ditadura no Brasil os militares “apenas” torturaram e não mataram (o que é mentira comprovada). Segundo ele, os militares durante a ditadura no Brasil deveriam ter matado “uns 30 mil” – coincidentemente, a quantidade de pessoas que se estima que os militares argentinos mataram durante a ditadura de 1976-81 naquele país. 

Essa entrevista quase lhe custou o mandato de deputado federal, mas não por ter se declarado favorável à Tortura. É que ele também disse que o presidente Fernando Henrique deveria ser fuzilado e o Congresso Nacional fechado. Bolsonaro teria escapado da cassação do mandato em 1999 graças ao então presidente da Câmara dos Deputados Michel Temer

Ainda que militares matarem pessoas do seu próprio povo seja um assunto importante de se discutir, não é essa a questão aqui. A questão é a Tortura. E por que discutir a questão da Tortura no período eleitoral? – Porque esse candidato a presidente é publicamente a favor da prática da Tortura; porque há militares e policiais candidatos(as) a todos os cargos; e porque também um dos candidatos ao Senado no Rio Grande do Sul, o general Mourão, declarou em entrevista à Globonews, durante a campanha eleitoral em 2018, que “heróis também matam”, referindo-se ao coronel Ustra, condenado por tortura, e denunciado por ter comandado torturas em dezenas de pessoas que estavam em prisão militar, sob a sua responsabilidade legal. 

A tortura é praticada diariamente nas prisões e delegacias brasileiras, sem que isso horrorize as pessoas que se consideram de bem. Foi incorporada à rotina, não é considerada aberração, nem vista como crime contra a Humanidade que é. Presas e presos são torturados em todo o Brasil, como eram antes e durante a ditadura militar de 1964. Prova disso é que esse deputado federal, agora presidente da República, declarou ser favorável à tortura como se estivesse dizendo qual esporte ou filme prefere, e ficou por isso mesmo. 

O livro “La Questión”, do jornalista francês Henri Alleg, diretor do jornal Alger Républicain, preso em junho de 1957 na Argélia – então colônia da França –, e torturado por militares franceses, é talvez a primeira obra a tratar exclusivamente da Tortura. Alleg conseguiu escrever o que sofreu nas mãos dos militares franceses, e por isso seu livro foi proibido na França, a pátria também do general Paul Aussaresses, torturador na Argélia e Indochina, professor de Tortura de militares norte-americanos, brasileiros e chilenos, e autor do livro “Service spéciaux, Algérie 1955-1957”, no qual relata o que os militares franceses fizeram contra a população da Argélia, que tentava se libertar da condição de colônia.

 Publicado em 2001, o livro de Aussaresses e suas entrevistas causaram grande repercussão, inclusive no Brasil, onde ele serviu como adido militar da França em 1973, durante a ditadura militar. A diferença no caso dele é que foi condenado por apologia à tortura, em 2004. Muitos dos seus ex-alunos também foram condenados, em vários países. Menos os do Brasil.

É até compreensível que candidatas e candidatos evitem tratar do tema da tortura durante a campanha eleitoral. Afinal de contas, essa é uma prática policial e militar que só costuma atingir quem tem pouco dinheiro, e muita gente do povo chega a considerar que “é isso mesmo”, “a polícia tem mais é que bater em bandido”, “bandido tem que apanhar” e coisas assim. A questão da tortura – praticada por servidores públicos municipais, estaduais e federais contra pessoas indefesas – não é vista como crueldade ou covardia, muito menos como crime a ser punido. No máximo, como “excesso”. E se a vítima morrer, um “acidente de trabalho”. 

Debater a questão da tortura durante a campanha eleitoral é encarar de frente a tragédia que ocorre diuturnamente, em presídios, delegacias e em outras instalações da União, dos estados e dos municípios: milhares de pessoas sendo torturadas no Brasil durante a leitura desse artigo. Talvez a melhor analogia que possa ser feita nesse debate tão necessário seja a das mortes em excesso durante a pandemia, que revelam as reais dimensões da tragédia ocorrida no Brasil. Se a postura do presidente da República – e do seu vice – tivesse sido outra, desde o início de 2020, a quantidade de vítimas fatais no Brasil teria sido muito menor.

Temos a covardia e a crueldade como partes integrantes da nossa cultura? – Se não fosse assim, um deputado federal a favor da Tortura teria sido cassado. Um candidato a presidente teria sido execrado e jogado no limbo. Um candidato à reeleição não teria quase 40% de intenção de votos.

Como debater a questão da Tortura durante a campanha eleitoral? Para o futuro melhor que todos nós queremos, o que significa na prática ter um senador que considera um torturador herói, e um presidente da República que enche a boca para dizer que é a favor da Tortura?

(*) Geógrafo e mestre em Políticas Públicas

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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