Opinião
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12 de maio de 2022
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10:29

Os áudios do Superior Tribunal Militar (por Antônio Carlos Will Ludwig)

Foto: Comissão Nacional da Verdade/Reprodução)
Foto: Comissão Nacional da Verdade/Reprodução)

Antônio Carlos Will Ludwig (*)

Recentemente foram revelados os áudios do STM onde aparecem dois trechos estarrecedores. Um deles se refere ao aborto de uma mulher provocado por choques elétricos e o outro é pertinente à sevícia de um homem na presença de sua esposa. Encontram-se expostos também algumas falas inconformadas de militares tais como a do general Augusto Fragoso que disse ter experimentado “um grande constrangimento”, que nunca tinha visto e ouvido “acusações desse jaez” e que o Exército deveria se recolher “aos afazeres profissionais” e a do almirante Júlio Bierrenbach o qual asseverou  não ser possível admitir que “o homem depois de preso, tenha a sua integridade física atingida por indivíduos covardes”. 

 Logo a seguir emergiram   pronunciamentos nos meios de comunicação. O presidente do STM disse em tom defensivo que “não temos resposta nenhuma para dar, simplesmente ignoramos uma notícia tendenciosa daquela, que nós sabemos o motivo”. De maneira chistosa o vice presidente da república declarou que “isso é história, já passou, mesma coisa que a gente voltar pra ditadura do Getúlio. São assuntos já escritos em livros, debatidos intensamente, passado, faz parte da história do Brasil. Vai apurar o que, os caras já morreram tudo pô, vai trazer os caras do túmulo?”

  Ao lado destes surgiram outros de cunho crítico. Eis alguns: “eles tinham conhecimento dos fatos, da lei e não puseram um fim ao que eles próprios definiram como covardia. Descumpriram assim suas obrigações como magistrados e como militares”. “Trata com absoluto desprezo as vítimas da ditadura, suas famílias e a sociedade que tem horror a esse período nefasto e quer, sim saber, processar, julgar e punir responsáveis e coniventes”. “Quem não se arrepende não merece perdão. Quem se vangloria dos próprios crimes não pode contar com a impunidade que é, hoje, um convite a repeti-los”.  

   Cabe lembrar que em países vizinhos inexiste discórdia dessa natureza onde o modo pelo qual aconteceu a transição do poder político foi um fator relevante. O caso da Argentina é ilustrativo. Ao perceberem que se aproximava o momento de entregar o governo aos civis os militares elaboraram a denominada Lei de Auto Anistia. Com a assunção da presidência por Raul Alfonsín ocorreu a sua anulação bem como foram criados decretos que possibilitaram o julgamento de militares que haviam cometidos crimes e gerada a Comissão Nacional Sobre o Desaparecimento de Pessoas cujo relatório feito por seus integrantes levou à condenação de muitos fardados.

  Embora pareça óbvio é preciso recordar que as relações civis militares harmoniosas e estáveis são por demais relevantes num país regido pela democracia. Por deterem o poder coercitivo e portarem armas os militares podem restringir e até eliminar um regime político democrático. Veja-se o caso do Estado de Israel onde a simbiose entre paisanos e fardados se situa num ponto próximo do máximo a ser atingido. Desde sua criação na década de quarenta do século passado até os dias que correm tal simbiose não apresentou nenhuma oscilação negativa e o parlamentarismo em vigor segue eficiente e inabalável.   

  Percebe-se então que ao contrário do que ocorreu na Argentina, nossos dirigentes optaram pela via da conciliação através da Lei da Anistia. Eles preferiram adotar uma solução negociada, em consonância ao cenário político da época. Supuseram que agindo desta forma os militares se afastariam da política, permaneceriam nos quartéis realizando suas atividades rotineiras e a redemocratização avançaria. 

  Esta forma amistosa de resolução do problema reflete a conduta das elites políticas e econômicas em relação ao comportamento dos militares no decorrer da história. Com efeito, os servidores uniformizados interviram na vida nacional por meio de um ilegítimo e ilegal poder moderador, assumiram autocraticamente o governo por vinte anos e se encontram ocupando milhares de cargos no setor público. Extemporaneamente tem ocorrido a militarização da polícia, das eleições e da educação. Poucos de seus integrantes ousaram questionar ou afrontar estas ações. Ao contrário, não só as aceitaram como muitas vezes as apoiaram e as incentivaram. Observe-se que os estudiosos do assunto já passaram a chamar o período dos governos castrenses como uma ditadura civil-militar e nossos parlamentares, até a presente data praticamente nada fizeram para aperfeiçoar o controle democrático das Forças Armadas. 

  Parece claro que este caso dos áudios expôs de forma indelével as atrocidades ocorridas e agravou a premência de uma acordada revisão do passado, sem a qual a imprescindível reconciliação entre civis e fardados nunca ocorrerá. Para tanto, é indispensável que os civis reconheçam que a tomada do poder em 64 decorreu de uma leitura consentânea e singular por parte dos militares a respeito do momento histórico, em função do seu papel constitucional de mantenedores da segurança interna. 

  Porém, os militares precisam admitir que a tarefa de garantir a ordem no interior do país não constitui, em hipótese alguma, uma justificativa para enquadrar opositores e derrubar governos eleitos. Necessitam abandonar a crença de que a interpretação das ocorrências do período ditatorial forjou uma narrativa inconsistente, tendenciosa e prejudicial às Forças Armadas e assumir que ela é decorrente das pesquisas científicas já realizadas. Devem aceder que um ajuste de contas relativo ao passado não tem a ver com as Forças Armadas do presente, mesmo porque, com alguns senões, seus integrantes se comportaram de modo adequado nestes anos em que o atual presidente da república tentou atraí-los para o seu condenável projeto populista de governo. Têm que consentir que não é justo as novas gerações de militares continuarem carregando a mácula daqueles que os antecederam. Enfim, necessitam aquiescer que é primordial assegurar que a verdadeira história seja devidamente oficializada e divulgada.

(*) Professor Aposentado da Academia da Força Aérea, pós-doutorado em educação pela USP e autor de Democracia e Ensino Militar (Cortez) e A Reforma do Ensino Médio e a Formação Para a Cidadania (Pontes)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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