Opinião
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6 de maio de 2022
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14:16

Até quando, Catilina? (por Odilon Antonio Marcuzzo do Canto)

Foto: Roberto Stuckert Filho/PR
Foto: Roberto Stuckert Filho/PR

Odilon Antonio Marcuzzo do Canto (*)

Certamente Cícero, filósofo e político de larga visão, convivia com a certeza de que mesmo a derrota necessária para salvar a República de Lucius Sergius Catilina, um ex-militar (a história não registra sua expulsão do exército romano), não decretava o sepultamento definitivo das distorções de caráter do senador. 

O filósofo certamente intuía que, qual eflúvio malévolo, elas ficariam sobrevoando a humanidade como um reverso do “pirilimpimpim” de Lobato – o do Sitio do Pica-Pau Amarelo-,  pronto a atuar nos humanos, transformando-os em seres “catilinídeos”, fazendo-os agir de forma sempre destrutiva com o objetivo único de produzir a confusão, a distopia social.

De tempos em tempos, o vaguear desses eflúvios pelas galáxias inclui em sua trajetória, infelizmente, o nosso planeta. Aqui a sua atuação é diretamente oposta ao processo civilizatório. 

Que outra explicação teríamos para entender as ações de um líder democraticamente eleito que na construção de cenários para se manter no poder, cria toda uma comoção nacional, elegendo um determinado segmento étnico como inimigo do povo, provoca o holocausto de seis milhões de seres humanos e deflagra a mais destrutiva guerra que a humanidade já presenciou?

Que outra explicação possível para entender como uma nação que, com mais de 200 anos de construção democrática, subitamente resolve sufragar nas urnas um presidente que baliza seus procedimentos de conduta absolutamente à margem dos cânones que regem o estado democrático, fazendo terra arrasada às duas normas básicas que preservam esse sistema; a tolerância mútua e o comedimento no fazer político? [1]

Que outra explicação teríamos quando um grupo de “catilinídeos” autoproclamados guardiões da decência e da honestidade nacional  utilizam práticas contorcionistas distorcendo o arcabouço legal, a “lawfare” [2], caçam os direitos políticos de um candidato democrático líder nas pesquisas eleitorais [3], prestes a vencer uma eleição presidencial? E, de lambuja, destroem a competitividade de boa parte do parque de empresas de engenharia brasileiro, incluindo a Petrobras, com a destruição de 4,4 milhões de empregos, perda de R$172 bilhões em investimentos, tendo como reflexo a perda de R$20,3 bilhões em impostos não arrecadados? [4]

Que outra explicação teríamos quando um líder nacional, eleito democraticamente, tenta por todos os meios atacar, deliberada e constantemente, as Instituições de Estado garantidoras do sistema de freios e balanços, característico do Estado Democrático e de Direito? [5]

Que outra forma teríamos para explicar quando um governo democraticamente eleito, num país geograficamente caracterizado como detentor do maior patrimônio florestal da humanidade, ao invés de incentivar a utilização eficiente e cientificamente orientada desse patrimônio, age no sentido oposto desmatando 1,5 milhão de hectares [6], e desestruturando o equipamento de estado responsável por gerir essas riquezas?

Que outra explicação teríamos quando um governo democraticamente eleito destrói uma política pública de sucesso reconhecida internacionalmente [7] como um programa estruturante de combate à miséria, substituindo-a por uma ação eleitoreira, mais dispendiosa aos cofres públicos e com menor eficiência no combate à pobreza? [8]

Que outra explicação teríamos quando um presidente democraticamente eleito busca, através de convocações repetidas, pressionar não as Forças Armadas do Art. 142 da Constituição Federal, cujas destinações e atribuições estão claramente dispostas no Cap. I da LC 97 de 09/06/1999, mas catilinídeos camuflados com fardas engalanadas e estreladas a questionarem, sem sólidas fundamentações e sem provas, a legitimidade de um sistema eleitoral repetidamente testado, criado pelo TSE e outros instituições, dentre as quais as Forças Armadas e o Instituto Brasileiro de Pesquisas Espaciais, INPE? [9]

O atual cenário político brasileiro, varrido por falsas notícias e por narrativas distorcidas criadas a partir de conveniências, intenções autoritárias e ditatoriais de detentores de cargos públicos democraticamente eleitos, exige atitudes de reflexão e prudência da sociedade brasileira. Reflexão para entender que o momento não está colocando em xeque duas possíveis visões de futuro para uma sociedade. O embate é entre a real possibilidade de termos um Brasil democrático a caminho de um desenvolvimento sustentável e com justiça social, ou a barbárie. Prudência para saber agir de forma proativa mas com cautela, mesmo porque os catilinídeos são impermeáveis a argumentos contrários às suas crenças.  

Obviamente o estadista Cícero sabia que na conjuntura da época, a vitória no embate de argumentos no Senado romano não significava ganhar a guerra. Na antiga Roma o argumento final era sempre o das armas. A ideia de uma “vontade geral” como fundamento de todo o poder político, só surgiria séculos depois no Contrato Social de Rousseau (1762). Dois mil anos de construção civilizatória nos acenam com possibilidades bem mais inteligentes, racionais e bem menos destrutivas de resolver diferenças de opiniões e de visões de mundo. 

Notas

[1] Como as Democracias Morrem, Lewitsky e Ziblatt, Ed. Zahar, 2018, pg.20

[2] Comitê de Direitos Humanos,ONU, 28/04/2022

[3] Datafolha 22/08/2018

[4] Operação Lava Jato: crime, devastação econômica e perseguição política, Ed. Expressão Popular, 2021

[5] Revista VEJA- 23/12/2021

[6] Brasil lidera derrubada de florestas tropicais no mundo Folha, 28/04/2022

[7] “Award for Outstanding Achievemant in Social Security” da ISSA, 14/10/2013

[8] “Perdemos uma grande oportunidade para melhorar o Bolsa Família”, 18/01/2022, www.insper.edu.br

[9] “Dez motivos por que o sistema eleitoral brasileiro é confiável”, 11/03/2020, www.tre-pr.ju.br

(*) Eng, Civil pela UFSM (1968); M.Sc. (1979) e Ph.D. (1991) em Engenharia Nuclear pela Universidade da Califórnia, Berkeley, EUA; Professor de Física Nuclear, Reitor da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM); Presidente da Associação Nacional de Reitores ANDIFES (1996/97). Presidente da CIENTEC/RS (1999/2002). Diretor de P&D da FINEP (2003/05). Presidente da FINEP (2005/07). Secretário-Geral da Agência Brasileira-Argentina de Controle de Materiais Nucleares – ABACC (2007/16). O Prof. do Canto foi membro do Conselho Deliberativo do CNPq e do Conselho Superior da CAPES, presidente do Comitê Brasileiro de Metrologia-CBM e presidente do Conselho Deliberativo da Sociedade Brasileira de Metrologia. Presidente da Sessão Latino-Americana da Sociedade Nuclear Americana (2009-10). Membro da Sociedade Nuclear Americana e da Academia Internacional de Energia Nuclear (INEA).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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