Opinião
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26 de abril de 2022
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07:36

Quando a casa queima, re-inventamos mundos (Coluna da APPOA)

Imagem: Pixabay
Imagem: Pixabay

Robson de Freitas Pereira (*)

Para nós, sozinhos, não pode haver salvação: há salvação porque os outros existem.” (Agamben)

Estamos voltando às ruas, a pandemia arrefeceu. Depois de dois anos, lutando pela sobrevivência em seu amplo sentido; ou seja, seguir as regras sanitárias de cuidados consigo e com os outros e, simultaneamente, não restringir as preocupações unicamente com a saúde biológica. Fomos obrigados a nos distanciar socialmente, sem perder o sentimento de solidariedade. Tarefa difícil. Agora, lidamos com outros efeitos da pandemia. É tempo de reconhecer os limites e renovar as apostas.

Nos habituamos às restrições e isto hoje faz obstáculo ao reconhecimento de que muita coisa mudou, mesmo que às vezes tudo pareça só repetir o mesmo. Não é igual; nem na intimidade dos lares, nem na vida político-social.

Uma das metáforas é de que nossa casa “está queimando”; onde casa pode ser entendido como nosso lar, cidade ou mesmo nosso país (na Amazônia os incêndios são reais). Alguns não veem, outros se angustiam com o que estão vendo e vivendo.  Fazem perguntas, ensaiam respostas para tentar dar conta e projetar um futuro.

Exemplo: o álbum dos Racionais, “Sobrevivendo no inferno”, completa 25 anos. Foi uma forma daquele grupo do Capão Redondo, periferia de São Paulo, dar voz e rosto a uma enorme população que se identificou com as letras e rimas que cantavam um Brasil real e profundo. Neste trabalho, transformaram o inferno. Bem naquele sentido que Italo Calvino nos contou em “Cidades invisíveis”, através da conversa entre Marco Polo e um Kublai Khan angustiado. “Khan disse: “É tudo inútil, se o último porto só pode ser a cidade infernal, que está lá no fundo e nos suga num vórtice cada vez mais estreito.

Marco Polo: “O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas. Aceitar o inferno e tornar-se parte deste, até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço.”

 “O brazil não conhece o Brasil,” dizia a canção popular corroborando a percepção de que neste momento podemos estar nos sentindo estrangeiros em nossa própria terra. As ruas e os outros estão diferentes. O que pode levar a uma intensificação do mal-estar.

Parece que temos que lidar com o fato de que se Instalou definitivamente a cisão/divisão entre o que consideramos conhecido e com o qual temos identidade e aquilo que rejeitamos por não parecer igual (“narciso acha feio o que não é espelho”). Por suas características primárias esta posição é fratricida – na imagem do espelho só tem lugar para um. Daí a importância da cultura para subverter as tentativas de hegemonia destas forças destrutivas. Racionais, Calvino e outros inúmeros trabalhadores da/na cultura notórios ou anônimos, são exemplos.

Viveremos outros tempos, onde o diferente não será ameaça? Lutamos por isto, mesmo nas situações mais adversas.

Parafraseando o compositor popular poderíamos escrever: “essa gente tá diferente/ que já não me conhece mais/eu já não reconheço mais.”

Será?  Porque afinal, Essa Gente compõe a multiplicidade de outros que nos rodeiam neste mundo e, simultaneamente, somos todos nós. Muita gente ficou diferente nestes últimos tempos. Por isto, vale persistir na transmissão de que a vida em comum é um aprendizado constante.

A psicanálise (mas não somente) nos ensina que sustentar a capacidade de se surpreender é fundamental para a persistência do desejo. Possibilita reconhecer a diferença, ali onde tudo parece o mesmo, contínuo, fixado. Passamos muito tempo olhando sem enxergar, vendo sem saber olhar.  É importante aprender a “ler” os sinais que mostram a descontinuidade, não fazer o recalque, ou a denegação das diferenças, para o bem e para o mal. Naturalizar um cotidiano violento pode aos poucos embrutecer, fazer a delicadeza desaparecer. 

Porque faz pouco tempo, algumas semanas, que o mundo antigo terminou e temos que ter coragem e, também contar com os outros, para enfrentar o novo amanhã, este que está se construindo desde ontem.  Podemos ficar demandando que a velha ordem se restabeleça para espantar o medo do caos, ou reconhecer o medo, a angústia como motores da possibilidade de fazer alguma coisa nova na relação com o mundo e com os outros.  As coisas programadas ontem não serão mais as mesmas. 

Para fazer frente às dificuldades (inúmeras) da atualidade, as palavras continuam sendo o sustento de nosso desejo de transformação. Pois, com graus variados de engenho e arte, espíritos argutos apontam há séculos que, mais do que refletir o real, a linguagem lhe dá forma e corpo. Reconhecer que perdemos o mundo de ontem, requer uma elaboração, um luto. Contamos com palavras compartilhadas para sustentar um desejo e apostar num futuro que está se construindo mais próximo de um novo começo, mais longe de uma distopia mortífera.

Cultura não é acessório, embora seja frágil porque precisa de persistência, coragem, inventividade para sustentar que nossa civilidade não prescinde jamais de uma articulação complexa entre o tempo de compreender e momento de agir. Intelecto e força só estão separados quando se perde a capacidade de realizar os desejos. Ou quando se tenta eliminar no outro a qualidade (ou liberdade) que ele exibe e esta passa a ser lida como insulto, ultraje, humilhação; sejam atributos sexuais, de comportamento ou crença. Isto pode nos conduzir a um estado onde arrisca-se a destruição de valores duramente conquistados pelos indivíduos e pela nação; seja em nome de uma verdade universal e/ou divina a qual todos tem que se submeter; seja em nome de uma vontade de poder onde um grupo tem mais direitos que todos os outros porque conquistou um governo. Máfia também tem sua ética. Entretanto, se ficarmos submetidos unicamente pela lógica da força nos transformaremos em coisas, meros objetos. Peças. Como eram chamados os escravos do século XIX e os prisioneiros dos campos de extermínio da “solução final” nazista. Hoje as peças podem ficar à mercê dos algoritmos. Por isto, precisamos reconhecer que quando a casa queima estarei pronto para habitar minha verdadeira casa, mesmo sabendo que a morada ideal jamais poderá ser habitada, barbárie é inaceitável.

(*) Robson de Freitas Pereira é psicanalista; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). Publicou, entre outros: O divã e a tela – cinema e psicanálise (Porto Alegre: Artes & Ofícios, 2011) e Sargento Pimenta forever (Porto Alegre: Libretos, 2007).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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