Opinião
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4 de janeiro de 2022
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07:37

Ano Novo – Vita Nuova- Rosa Nova (Coluna da APPOA)

Capa do álbum 'Rosa do povo', de Martinho da Vila (Arte de Elifas Andreato)
Capa do álbum 'Rosa do povo', de Martinho da Vila (Arte de Elifas Andreato)

Robson de Freitas Pereira (*)

Algumas ilusões feneceram, mas o sentimento moral é o mesmo —  e está dito o necessário.”

 Carlos Drummond de Andrade [1]

Será  2022 o ano em que as pandemias se dissiparam? Os anos em que vivemos em perigo, já conhecemos. Seus efeitos ainda se fazem sentir nas ruas, no corpo da memória e na memória do corpo, dos corpos que hoje são cruzes ou cinzas, símbolos diversos que tentam aplacar o sofrimento de quem perdeu entes queridos e não teve tempo suficiente para se despedir, ou viu-se separado das pessoas amadas por mais tempo do que gostaria, ou mesmo teve que enfrentar todos os riscos para sustentar uma família. Nesta travessia, contamos com os que trabalharam/trabalham na linha de frente do combate a pandemia fossem/sejam médicos, enfermeiros, assistentes sociais e muitos outros. E também com motoristas de transporte público, os trabalhadores na limpeza urbana, os que não interromperam o recolhimento do lixo de nossa cidade, aos entregadores em geral que fizeram isso de bicicleta, moto ou outros veículos. Acrescente-se o trabalho voluntário. Todos batalharam cotidiana e invisivelmente, impedindo que o caos se instalasse.

Uma pesquisa feita nos últimos dias de dezembro de 2021 apontou que 17% dos entrevistados tinham “esperança” como palavra mote para o ano novo. Em meio as discussões naturais decorrentes, vários lembraram que era preciso fazer uma distinção com auxílio de um verbo/neologismo colocado em circulação na nossa língua por Paulo Freire: “… É preciso ter esperança, mas ter esperança do verbo esperançar; porque tem gente que tem esperança do verbo esperar. E esperança do verbo esperar não é esperança, é espera. Esperançar é se levantar, esperançar é ir atrás, esperançar é construir, esperançar é não desistir! Esperançar é levar adiante, esperançar é juntar-se com outros para fazer de outro modo”. [2]

Poéticas e inventivas palavras. Uma maneira de dar forma as expectativas que qualquer início de ano traz. Este, mais do que nunca, nos perguntamos sobre as perspectivas de futuro imediatas, mas também de longo prazo. 

As expectativas que tínhamos no início da pandemia, como ficaram? A crueldade ombreou-se com a solidariedade? Ou a solidariedade foi maior? O distanciamento social obrigatório intensificou depressões, medos e impulsividades. Provocou rompimentos afetivos. Entretanto, alguns fatos que influenciam nossa vida psíquica e social ficaram mais evidentes.  A vacinação, aliada aos cuidados que a maioria teve, estabeleceu uma perspectiva de futuro que ainda não tínhamos no final de 2020 e mesmo no início de 2021- ano passado (nesta fusão do tempo, a gente quase esquece que o reconhecimento da pandemia global aconteceu em março de 2020). Vacinação extensa em grande parte graças aos SUS e nossa rede de atenção pública que trabalhou duramente, demonstrando sua necessidade e eficácia. Neste 2022 de eleições majoritárias, nenhum candidato que busque se eleger em outubro próximo vai ousar atacar o sistema único de saúde, pelo menos não explicitamente. O que nos leva a outras perguntas: em política, como ficamos? Mais cínicos, mais cruéis, mais céticos? A citação inicial de Carlos Drummond de Andrade deixa claro que elaborar situações traumáticas, também implica deixar cair ideais e ilusões. Porém, não implica abrir mão do desejo de mudança para melhor, mesmo sem garantias. Escrito entre 1943 e 1945, do meio para o final da II Grande Guerra, os poemas de Rosa do Povo traziam este desejo de renovação que reafirmava a potência das palavras plenas. Cito a abertura: “A rosa do povo despetala-se, 

ou ainda conserva o pudor da alva?

 E um anúncio, um chamado, uma esperança embora frágil, pranto infantil no berço? Talvez apenas um ai de seresta, quem sabe. 

Mas há um ouvido mais fino que escuta, um peito de artista que incha,

 e uma rosa se abre, um segredo comunica-se, o poeta anunciou,

 o poeta, nas trevas, anunciou.” [3]

Rompendo as trevas o poeta anunciou que uma flor nasceu na rua! A vida deixou de ser nua; uma flor insinuou-se na rachadura do asfalto. Drummond antecipa o Agamben de 2008 em sua interpretação do escuro de nosso tempo. O poeta faz o anúncio para poder atravessar as luzes que podem cegar e obscurecer o pensamento. Constituindo um legado que possibilita outras criações; vide Martinho da Vila e seu álbum Rosa do Povo (1976) [4]. Como se nos dissessem que somos seres em constante mutação, vagalumes que renascem das cinzas, apesar de tudo. Apesar dos incêndios da floresta, das casas, do clima, da escassez das águas, ainda persistem rios tão largos que não enxergamos a outra margem. Apostas tão fortes na possibilidade de ultrapassar as dificuldades junto com os outros que fazem com que reconheçamos que há outras margens além daquelas conhecidas, em que nos protegemos. Como dezenas de anos mais tarde, outro poeta viria dizer/repetir em outra língua: “There is a crack, /a crack in everything/ That’s how the light gets in” [5]. A fissura pode ser buscada nos detalhes, nos pequenos gestos de gentileza e solidariedade. Por aí a escapa a luz, renasce a flor. 

Neste ano de 2022, teremos oportunidade de comemorar muitos gestos de ruptura e desprendimento. Só para citar alguns: o centenário de três obras que mudaram a face da literatura e da linguagem: Ulisses, de James Joyce; A terra devastada (Wasteland), de T.S. Elliot e O quarto de Jacob, de Virginia Woolf. Sem falar no centenário da Semana de Arte Moderna e no bicentenário da independência brasileira. Motes para muitas discussões e quiçá elaborações que nos façam mais fortes para enfrentar as adversidades que estão no horizonte.  Afinal, solidariedade, amizade são fundamentais e desejar é imaginar que podemos ser melhores, apesar de tudo.

Começamos o ano.

Notas

[1] Abertura do livro de poemas A Rosa do Povo, originalmente lançado em 1945.

[2] Pedagogia da Esperança, 1992.

[3] Carlos Drummond de Andrade, A Rosa do Povo. Ed. Record. RJ. 2000.

[4] https://youtu.be/AWPay1sIBRo   – João e José, cantada por Martinho e Diogo Nogueira em homenagem a João Nogueira parceiro no álbum Rosa do Povo. Capa e arte de Elifas Andreato.

[5] Leonard Cohen – “Anthem”

(*) Robson de Freitas Pereira é psicanalista; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). Publicou, entre outros: O divã e a tela – cinema e psicanálise (Porto Alegre: Artes & Ofícios, 2011) e Sargento Pimenta forever (Porto Alegre: Libretos, 2007).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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