Opinião
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9 de novembro de 2021
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07:30

O crepúsculo dos machos¹ – novas auroras? (Coluna da APPOA)

Clint Eastwood no filme
Clint Eastwood no filme "Cry Macho: O Caminho para redenção" (2021) (Foto: Divulgação)

Robson de Freitas Pereira (*)

Dois filmes recentes, Cry macho e 007 sem tempo para morrer nos ajudam a fazer considerações sobre a morte, o luto e a transformação da vida nestes tempos quase pós-pandêmicos- afinal, depois de praticamente dois anos e mais de 600 mil mortos somente aqui no Brasil, a vacinação em massa começa a fazer seus efeitos. 

Não é segredo que este é o filme despedida de Daniel Craig encarnando o personagem mais longevo do cinema  – a franquia tem aproximadamente 60 anos. Isto foi tema da campanha de divulgação do lançamento, adiado desde o ano passado em função da pandemia. James Bond morreu, long live 007. The queen is dead. God save the queen! O personagem continua; resta saber quem terá a difícil missão de substituir Daniel Craig considerado o melhor Bond de todos os tempos (os fãs de Sean Connery discordam, mas vamos deixar isto de lado).

Os dois filmes não podem ser considerados excepcionais e tem características distintas. O 007 é um blockbuster. Superprodução, locações internacionais, cast milionário. Boas interpretações que sustentam a aventura; em especial Craig, Ralph Fiennes e Ana de Armas capazes de modular a intensidade, dramática ou cômica. Além da ação, num filme repleto de referências à história do personagem nos filmes anteriores, interessa sublinhar as escolhas, a nostalgia e maneira como o personagem faz sua despedida. Um super-herói tem que salvar o mundo, claro. Entretanto, neste filme temos também uma escolha pela transmissão: o herói entrega sua vida num ato de amor e aposta nas novas gerações. 

Cry macho que no Brasil recebeu um subtítulo descritivo: o caminho para a redenção é diferente. Orçamento bem menor, locações na fronteira México- EUA, filmagem com fotografia mais filtrada e intimista jogando luz sobre alguns conflitos parciais que nos levam a pensar em cenários mais gerais. Clint Eastwood dirige e interpreta o papel principal. Fazer isto aos 92 anos já vale a ida ao cinema, ou o aluguel nas plataformas digitais. 

Clint foge dos estereótipos sobre o México no cinema norte-americano- traficantes, drogas, hitmens, coyotes, sicários. Filme rompe com clichês valendo-se deles, fazendo com tenham um sentido diferente, ou mesmo atualizando valores. Vejamos alguns deles.  

A missão aceita por uma palavra empenhada- uma dívida reconhecida. Michael Milo (Clint) tem que viajar ao México e resgatar o filho de um amigo. Deve isto ao outro. Mike Milo – cinco vezes campeão nacional de rodeios. Muitos troféus, várias fraturas. Na última, quebrou a espinha dorsal. Não pode mais competir. Logo depois, perdeu mulher e filho num acidente. Espinha quebrada duas vezes. Este caubói aposentado, envelhecido, tem que atravessar a fronteira e resgatar um adolescente abandonado pelo pai e maltratado pela mãe. Um objeto de negociação entre os dois, um asset. 

Nesta viagem, o diálogo e as modificações, novos aprendizados vão acontecendo. Novos encontros e descobertas entre eles e com outros – Martha (Natalia Traven) e suas netas. A população de uma cidadezinha fronteiriça; pobre mas não miserável, onde é possível encontrar trabalho, solidariedade e descobrir, ou renovar, o amor.

O que significa isto num plano mais geral? Naquele sentido que Eneas de Souza intitula que “Os filmes pensam o mundo”? Mexico x EUA, relação de proximidade e diferenças, fronteiras do império. Lembremo-nos que o ex-presidente queria criar um muro entre os países. Não satisfeito, mandava encarcerar crianças, com ou sem família que fossem suspeitos de travessia ilegal. Só quem não conhece uma fronteira pode idealizar uma “solução final” deste formato. Os amigos do Sul do Brasil podem imaginar algo absurdo assim no Chuy ou Rivera? O filme de Clint nos apresenta também a decadência de um imaginário: o mundo dos rodeios e do faroeste. Mesmo que ele ainda resista em seu país de origem e noutras adjacências mais ao sul, nos quintais do império. 

Ao mesmo tempo, na crítica, a possibilidade de reconstrução. Macho é o nome do galo de estimação de Rafael , Rafa (Eduardo Minett). Um galo de rinha, vermelho, forte, lutador, verdadeiro “big red rooster”. Os trocados ganhos nas lutas, ajudavam a sustentar seu exílio. Agora, ele pode se interrogar, depois de reavaliar seu sonho infantil de caubói: “who am I, Mike?”, quem sou eu? Pergunta de Rafa e, também, de Mike, o homem velho.

O que podemos ser, depois da queda dos mitos? Mike faz seu acerto de contas: “esta coisa de macho esteve supervalorizada. Hoje em dia não sustenta nada. Mas quando você envelhece e se dá conta, pode ser tarde demais”. O personagem mostra que mesmo sendo avô/avó é possível reencontrar o amor. Mike e Rafa fazem suas escolhas, cada um em seu tempo e lugar.

Existem muitas pesquisas e ensaios sobre o tema de fronteiras, violência e travessias. Entre eles o documentário de Laura Waddington, Border” (2004); ou mesmo as pesquisas médico/antropológicas que analisam os efeitos mortíferos da heroína sobre os usuários frequentes, no norte do México (a mais alta taxa de mortalidade no país, quiçá do mundo). E o livro de Roberto Saviano, “Zero, Zero, Zero”, onde ele descreve jornalisticamente as condições de produção e de distribuição de cocaína na América Latina, mostrando como, neste negócio, o México tornou-se maior que a Colombia e cujas rotas para Europa, obviamente, passam pelo Brasil.  Luiz Eduardo Soares também detalhou isto em “Tudo ou nada” entre outros trabalhos sobre a violência urbana, as milícias e o tráfico. Neste tema sinistro e complexo, a lista de trabalhos é longa, rica e variada. Porém, aqui nos interessa a ficção cinematográfica. Ela também nos ensina. Ou pelo menos, com ela aprendemos a ler/ver e interrogar uma realidade onírica e real simultaneamente. Os cinemas também sofreram com a pandemia. O que era lento, acelerou: o esvaziamento das salas de exibição. O que acontecerá com elas? Conosco? Estamos vivendo o crepúsculo do cinema? Ars longa , vita brevis. Certamente estamos atravessando o pior dos tempos pandêmicos. Temos lutos a elaborar, nas mais diversas dimensões: pessoais e comunitárias. Recém começamos, não há garantias. Mas é este trabalho de luto que possibilita sustentar um desejo de que é vital para nós reconhecer os erros do passado e acreditar que podemos reinventar um futuro. 

[1]O crepúsculo do macho”, no singular, foi o título do segundo livro de Fernando Gabeira, pouco depois de seu retorno do exílio. 

(*) Robson de Freitas Pereira é psicanalista; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). Publicou, entre outros: O divã e a tela – cinema e psicanálise (Porto Alegre: Artes & Ofícios, 2011) e Sargento Pimenta forever (Porto Alegre: Libretos, 2007).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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