Opinião
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24 de novembro de 2021
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07:58

A quarta onda da covid-19 (por André Moreira Cunha e Andrés Ferrari)

Europa se tornou epicentro da quarta onda de covid-19 (Unsplash)
Europa se tornou epicentro da quarta onda de covid-19 (Unsplash)

André Moreira Cunha e Andrés Ferrari (*)

Nós estamos cansados de enfrentar a doença e a estupidez”, Oleksandr Molchanov, médico croata, novembro de 2021.

O homem é um animal racional. Pelo menos é o que nos disseram. Ao longo da minha longa vida, eu tenho procurado, diligentemente, evidências que consubstanciem aquela afirmação. Até agora, eu não tive a sorte de encontrá-las.” Bertrand Russell, Unpopular Essays, 1950.

O inverno está chegando

Às vésperas de um novo inverno, a Europa se tornou o epicentro da quarta onda da Covid-19. Vários países já adotam medidas mais restritivas para tentar conter a alta nas contaminações e nas mortes, particularmente lockdowns e o passaporte vacinal. Ademais, já anunciaram a necessidade de uma terceira dose de reforço na vacinação e, em alguns casos, especulam sobre tornar a vacinação obrigatória. Diferentemente do que ocorrera durante a primeira onda, parcelas da população não parecem dispostas a aderir aos esforços governamentais de combate à pandemia. Protestos violentos se multiplicam pelas ruas de Viena, Bruxelas, Haia, Roterdã, Zagreb, Kiev, dentre outras. Os “antivax” entoam cânticos em defesa de sua liberdade individual e acusam seus governos de serem fascistas. Por isso mesmo, cantam com força a música “Bella Ciao” e carregam cartazes com dizeres como “Juntos pela Liberdade”.  O ecletismo predomina, unindo pessoas portadoras de símbolos de movimentos como o LGBTQ+ e outras orgulhosas de suas credenciais de radicais de direita. 

A Áustria entrou em lockdown de dez dias. Em fevereiro de 2022, a vacinação será obrigatória. Para o governo conservador de Alexander Schallenberg, as liberdades individuais estão em um segundo plano: “ A longo prazo, a saída deste círculo vicioso em que nos encontramos … é, tão somente, a vacinação “. Os novos casos registrados já somam uma média diária superior a 15 mil. Na Bélgica, as restrições ainda não são compulsórias, salvo o uso de máscaras em público. O governo tenta convencer as pessoas a trabalharem em casa pelo menos quatro dias da semana, bem como já anunciou a vacinação de crianças entre cinco e onze anos. 

Na Alemanha, os pronunciamentos de Angela Merkel e de seus ministros têm sido particularmente contundentes. Jens Spahn, Ministro da Saúde, afirmou que “… até o final do inverno todos estarão vacinados, curados ou mortos.”. Ele reafirmou a gravidade da disseminação da variante Delta da Covid-19. Em seus últimos dias como a principal liderança europeia, Merkel sinalizou a disposição para implementar medidas duras contra os não vacinados, com restrição de acesso a lugares públicos. Para ela, a quarta onda é “dramática” e vai atingir o país com “força total”.

Os croatas antivax não deixam dúvidas de suas intenções: exigem a renúncia imediata do primeiro ministro, Andrej Plenković. Milhares de pessoas gritavam as seguintes palavras de ordem em Zagreb: “Um túmulo é melhor do que ser escravo!”, “Vocês não terão as nossas crianças!”, “Desperta Croácia!”, “As Leis de Deus estão acima de todas as leis!”. Os países do leste europeu têm taxas de vacinação bem menores do que as observadas no conjunto da Europa (70% de vacinados, dos quais 67% com imunização completa), oscilando entre 40% e 60% com pelo menos uma dose (Polônia, Estônia, Eslovênia, Eslováquia, Rússia).   

Na Ucrânia, a vacinação atinge menos de 30% dos 41 milhões de habitantes. O sistema de saúde está à beira do colapso com a expansão das internações, particularmente as que exigem tratamento intensivo e respiradores artificiais. De acordo com o governo ucraniano, 96% dos internados não receberam nenhuma dose das quatro vacinas disponíveis: Pfizer-BioNTech, Moderna, AstraZeneca e Sinovac. Não faltam recursos originados na ciência e no esforço estatal. Um médico local, Oleksandr Molchanov, sintetizou o quadro atual: “Nós estamos cansados de enfrentar a doença e a estupidez”.  

As imagens de europeus agradecendo aos profissionais da saúde com aplausos efusivos desde suas sacadas e janelas já é uma memória longínqua. A reação negativa às políticas públicas que constrangem as liberdades individuais no contexto da pandemia tem sido crescente, tanto na Europa, quanto em outras democracias liberais, como nos casos recentes de Austrália e Nova Zelândia. Nas regiões menos desenvolvidas do mundo, as dificuldades de acesso às vacinas e demais medidas profiláticas, e a perda de renda e de trabalho, multiplicam-se os focos de insatisfação, com desdobramentos por vezes violentos. 

Pouco mais da metade da população global já recebeu pelo menos uma dose de vacina contra a Covid-19 [1]. Já foram aplicadas 7,7 bilhões de doses, uma por habitante do planeta. Diariamente, vacina-se um contingente equivalente à população da Austrália. Não parecem restar dúvidas de que foram bem-sucedidos os esforços para o desenvolvimento e a produção de vacinas eficazes e seguras, pelo menos até onde as evidências científicas nos autorizam a especular. Ainda assim, o caráter já endêmico da Covid-19 e de suas mutações mais agressivas, com a variante Delta, leva à necessidade de reforçar a imunização e de desenvolver uma nova geração de vacinas. Aparentemente, o conceito de imunização completa é tão mutante quanto o vírus. Com isso, o desafio que se renova é o de manter um conjunto de políticas sanitárias que contenham o agravamento da pandemia. E tudo isto, em um contexto onde há uma assimetria profunda na cobertura vacinal: enquanto os países de renda média e alta possuem taxas de vacinação (com pelo menos uma dose) superiores a 70%, os países de renda média-baixa (42%) e baixa (5%) apresentam uma realidade ainda preocupante. 

Da mesma forma, os efeitos socioeconômicos negativos da pandemia seguem presentes. As pressões altistas de preços, que se originam na desorganização nas cadeias produtivas, afligem as camadas de baixa renda ao redor do mundo. As projeções para 2021 e 2022 do desempenho em termos de crescimento do produto e do comércio internacional, e de recuperação do mercado de trabalho, são revisadas para baixo de forma recorrente. Os volumes maciços de estímulos monetários e fiscais, com forte a expansão nos balanços dos principais bancos centrais em US$ 12 trilhões, desde 2020, e os pacotes de estímulos governamentais de US$ 17 trilhões, evitaram um quadro ainda mais dramático. Vários dos programas de apoio estão se encerrando ou já foram descontinuados, sem que o ritmo de expansão da renda tenha voltado aos patamares pré-crise, que já eram insuficientes em muitos países.

O novo surto de Covid-19 já tem sido denominado de a “pandemia dos não vacinados”, na medida em que quase a integralidade dos contaminados que apresentam sintomas graves e, por decorrência, são hospitalizados, optaram por não buscar a alternativa da imunização. Nos países de alta renda não faltaram recursos financeiros, tecnológicos e sanitários. O avanço da quarta onda não reflete restrições objetivas, mas os limites da capacidade estatal de mobilizar uma ação coletiva efetiva diante da insatisfação popular. A promessa das democracias liberais foi a de garantir o progresso material e a inclusão plena para os indivíduos. A realidade tem sido oposta. A era da globalização sob a hegemonia neoliberal produziu sociedades mais desiguais e menos coesas. Os sucessivos choques adversos, particularmente a crise financeira global (2007-2009) e a pandemia da Covid-19, ampliaram a insegurança individual, conforme evidenciam os estudos da OCDE, e potencializaram a percepção de que o sistema não funciona bem para todos. A “rebelião das massas”, tão bem descrita por Ortega y Gasset, torna-se menos irracional quando compreendida enquanto uma reação à “rebelião das elites”. Esta, por sua vez, implicou no abandono do compromisso com a democracia por parte dos que detêm poder e riqueza, conforme nos alertou Christopher Lasch

[1] Ou 53,3% na posição de 21 de novembro de 2021. Diariamente são vacinadas 23,4 milhões de pessoas, o que equivale à população da Austrália (25 milhões de pessoas).

(*) Professores do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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